A Argentina elegeu ontem o economista Javier Milei, 52, como novo presidente do país. Com 97,7% das urnas apuradas, o candidato ultradireitista pelo partido Liberdade Avança teve 55,76% dos votos, ante 44,23% de Sergio Massa, representante governista e atual ministro da Economia, que reconheceu a derrota em discurso realizado antes da divulgação do resultado oficial.
Em seu primeiro discurso como presidente eleito, Milei prometeu: "Hoje começa a reconstrução da Argentina. É uma noite histórica para a Argentina". Ele adotou, contudo, um tom mais sereno e centrado, sem sinais de rompantes que marcaram sua carreira política.
Na mesma fala, Milei agradeceu a sua irmã, Karina Milei, a sua equipe, ao ex-presidente argentino, Mauricio Macri, e à sua rival no primeiro turno, Patricia Bullrich, pelo apoio. "Hoje começa o fim da decadência da Argentina. Hoje é o fim da ideia de que o Estado é um espólio a ser compartilhado entre políticos e seus amigos. Hoje voltamos a abraçar as ideias de liberdade. A decadência chegou ao fim", acrescentou.
Milei presidirá a Argentina pelos próximos quatro anos e sucederá o peronista Alberto Fernández. Em 2019, o país era governado pela direita (Macri) e migrou para a esquerda (Fernández). Com Milei, a nação dá uma guinada ainda mais à direita, desta vez confiando o poder a um candidato que se apresenta como antissistema.
A eleição se deu sem grandes problemas, com ocorrências pontuais. Dentre elas, foram registrados casos de danos às cédulas de papel, disponibilizadas para os eleitores votarem, em determinados locais. A Justiça Eleitoral agiu de modo célere para contornar a questão e esclarecer os critérios para a contabilização desses votos.
Milei conseguiu virar o resultado registrado no primeiro turno, quando Massa obteve cerca de 36% dos votos, contra seus cerca de 30%.
Fator importante para essa virada foi a declaração de apoio da 3ª colocada Patricia Bullrich, da direita mais tradicional. Ela anunciou apoio a Milei na campanha do 2º turno, sendo hoje cotada para compor a nova gestão.
A vitória de Milei pode sinalizar ainda mudanças nas relações argentinas com parceiros comerciais e regionais importantes, como o Brasil e a China. Durante a campanha, o presidente eleito chegou a falar em romper com esses aliados e em retirar a Argentina do Mercosul, bloco econômico sul-americano. Além disso, prometeu dolarizar a economia e fechar o Banco Central, o que é tido como impraticável. Nas semanas anteriores ao 2° turno, Milei falou em tom mais brando quanto a parte dessas propostas.
O resultado é também um indicativo de possível ganho de tração da direita na região e, sobretudo, no vizinho ao Sul. Em menos de três anos, Milei foi de nome desconhecido na política a deputado nacional (2021) e agora presidente eleito da Argentina. Seu partido cresceu, passando de três parlamentares eleitos em 2021 para a terceira maior bancada do Congresso, com mais de 40 parlamentares, em outubro.
O atual presidente argentino, Alberto Fernández, se manifestou nas redes sociais, afirmando que o povo "expressou sua vontade" nas urnas e já falou em tom de colaboração.
"Acredito que amanhã mesmo podemos começar a trabalhar com Milei para garantir uma transição ordenada", escreveu, agradecendo a Massa pela campanha realizada.
O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro (PL) também se pronunciou após a vitória do aliado. "Parabéns ao povo argentino pela vitória com Milei. A esperança volta a brilhar na América do Sul", disse nas redes.
Bolsonaro citou ainda a eleição nos EUA no ano que vem: "Que esses bons ventos alcancem os Estados Unidos e o Brasil para que a honestidade, o progresso e a liberdade voltem para todos nós".
Já o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), parabenizou o novo governo, sem citar nominalmente Milei.
"Meus parabéns às instituições argentinas pela condução do processo eleitoral e ao povo argentino que participou da jornada eleitoral de forma pacífica. Desejo boa sorte e êxito ao novo governo. A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos", escreveu no X (ex-Twitter). (com agência)
Voto envergonhado deu vitória a Milei, diz Nunes, da Quaest
O voto envergonhado deu a vitória ao candidato libertário Javier Milei, assim como aconteceu em 2018 quando Jair Bolsonaro saiu vencedor da eleição presidencial brasileira, avalia o professor da UFMG e diretor da Quaest Pesquisa, Felipe Nunes.
"Assim como aconteceu em 2018 no Brasil, o eleitor argentino teve vergonha de reconhecer sua intenção de votar em Milei", escreveu Nunes, em postagem na rede X (antigo Twitter).
Os primeiros resultados oficiais davam a vitória de Milei contra o peronista Sérgio Massa, com 56% dos votos ante 44% do seu adversário.
Na sua avaliação, Nunes disse que a alta inflação foi derrotada, com "o voto econômico mais uma vez mostrando sua faceta".
Para Nunes, especialista em pesquisa de opinião e redes sociais, o consenso de que Massa teria se saído melhor no último debate da campanha presidencial "não teve a menor relevância".
Além disso, o diretor da Quaest observa que depois que os ex-presidentes Maurício Macri e Alberto Fernandez erraram, o sentimento antissistema preponderou no eleitorado argentino.
"Nem mesmo o afastamento do atual presidente do processo eleitoral foi capaz de evitar a derrota de seu grupo político", escreveu Nunes (AE).
Ex-goleiro, anarcocapitalista e ultradireitista: quem é Milei
O libertário Javier Milei surgiu como uma terceira força política e virou o jogo eleitoral. O presidente eleito da Argentina se colocou como um outsider e disse que iria acabar com a classe dominante, reduzir o governo e fechar o banco central.
Antes de chegar à política, Milei foi goleiro do clube de futebol argentino Chacarita Juniors, mas encerrou a carreira no começo dos anos 1990. Nascido no bairro portenho de Palermo, em 22 de outubro de 1970, teve uma infância marcada por polêmicas em família.
A ascensão do novo integrante da Casa Rosada começou em 2018 nos principais meios de comunicação argentinos, com a divulgação de seu discurso "liberal libertário", como costuma chamar.
O grande salto em sua carreira política veio em 2020, quando anunciou sua candidatura à presidência nas eleições de 2023. Isso abriu caminho para que seu partido, La Libertad Avanza, conquistasse duas cadeiras na Câmara dos Deputados no ano seguinte.
(Agência Estado)
Dúvidas pela frente
Desafios de Milei
Agora na Casa Rosada, Javier Milei levanta uma série de dúvidas, que não se restringem apenas à viabilidade de sua agenda econômica ultraliberal.
A principal delas é o futuro da relação com o Brasil. O libertário não esconde sua antipatia pelo Mercosul e pelo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, a quem chama
de "comunista".
O Brasil, no entanto, é o maior parceiro comercial da Argentina, uma interdependência com impacto nos dois lados da fronteira. O próprio Milei já tratou de conter os rumores de que pretende romper relações com Brasília, afirmando que prefere que os laços sejam levados adiante por empresários.
Mas a simpatia do governo brasileiro por Massa - explícita durante a campanha - pode criar ruídos na relação. Por outro lado, o peronismo, historicamente protecionista e nacionalista, era muitas vezes um entrave à integração. O futuro agora está na habilidade de Milei governar sem olhar para o retrovisor.