Hilário Ferreira
hilario.ferreira@fate.edu.brProfessor e pesquisador da história e cultura negra cearense
As tradições, segundo o historiador Eric Hobsbawm são inventadas com o objetivo de incorporar determinados valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um processo que os ligam ao passado. No Ceará, mais especificamente Fortaleza, a memória da abolição é algo presente em nossas vidas. Encontramos prédios e ruas (Palácio da Abolição, Avenida da Abolição, rua 25 de março) e até pousadas e hotéis com referência a este fato histórico. Além dos debates e palestras em escolas na data comemorativa - ritual que nos faz lembrar deste acontecimento ao trazer o passado para o presente.
Mentir e ocultar fatos é parte da tradição inventada, por isso que há poucas notícias da participação efetiva de índios e negros nos eventos históricos. O que seria da história do descobrimento do Brasil se repetíssemos ritualmente que essas terras já estavam habitadas? Daí, na história oficial da abolição do Ceará, o negro (o mais interessados na liberdade) aparecer como coadjuvante passivo. Apáticos, ganharam a liberdade: uma dádiva dos brancos.
A apropriação e o uso dessa tradição trazem benefícios para muitos, menos para o povo negro cearense. Os ganhos simbólico e financeiro foram capazes de trazer ao Estado do Ceará a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) em Redenção. E quanto aos descendentes dos ex-escravizados? Ao que tudo indica, entregues à própria sorte.
Por mais que se negue a presença de negros no Ceará, eles existem. Segundo a Comissão Estadual de Quilombos Rurais no Ceará (Cerquice), há em nosso Estado umas 80 comunidades negras distribuídas em 33 municípios. Porém, os conflitos com latifundiários e lideranças ameaçadas são reais.
O relatório do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (2016) revela dados impressionantes. No tópico da violência armada, todos os jovens vitimas de homicídio em Horizonte foram mortos por arma de fogo - 100%. Nas demais cidades em que ocorreu a pesquisa (Fortaleza, Juazeiro do Norte, Sobral, Maracanaú, Eusébio e Caucaia) os percentuais superam 80%. Os dados gerais confirmam o que se denunciava há tempos: “16,5 é a média de idade das vítimas nas sete cidades”. A maioria dos adolescentes mortos é do sexo “masculino: 97,95%, enquanto feminino: 2,05%”. “Quanto à cor: 69% de pardos e pretos. Brancos: 29% e outros, 2%”. Há uma guerra acontecendo.