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Iana Soares: Poeira de estrelas
Opinião

Iana Soares: Poeira de estrelas

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Iana Soares

ianascm@gmail.com

Jornalista do O POVO

Ganhei vinte e cinco quilos em oito anos, quatro cicatrizes, uma pálpebra mais baixa. Perdi quatro cisos e outro que não sei o nome, o movimento de uma corda vocal, alguns cabelos. Morei em quatro cidades, tive três namorados, dois amores, um câncer, duas metástases, alguns miomas. Nunca tive cava no pé. Quis ser bióloga, psicóloga, virei cientista social (quase antropóloga, depois larguei), jornalista, fotógrafa, artista. Detesto rúcula, beterraba e fio dental. Adoro atum, esmalte azul, óculos de grau, cheiro no cangote, pegar no lóbulo da orelha de alguém, dormir com o lençol do lado do rosto.


Nasci na reabertura, subi na cacunda do meu pai quando cantavam a música do Lula lá, brilha uma estrela. Caí em cima de um copo e ganhei uma cicatriz na barriga, tive um princípio de necrose no tornozelo no mesmo ano em que celebrei aniversário com o tema da Hello Kitty (ou da Moranguinho). Morei no mesmo prédio de Luiz Gonzaga, que achava minha mãe uma bela morena. Encontrei o mesmo prédio anos depois, apostando em algum tipo de inscrição visual na memória. Tive um padrinho mais velho e hoje é tudo tão distante, mas ainda lembro do cheiro das vacas e do mato em Mombaça. Voltei para enterrar a bisavó centenária.


Entendi que era gente do outro lado do Atlântico, mas também nas margens do Maranguapinho, em um dia que choveu muito, a água encostava na cintura e fomos descobrir as histórias de quem arriscava a vida ali. Pesquisei o que era ser índio no meio de um conflito com um empreendimento turístico, mas nunca consegui subir a duna tão rápido como aquela senhora com mais de oitenta e vestido azul. Não peguei chikungunya, nem publiquei um livro. Fiz planos e desfiz.


Completei trinta anos. Entrei em crise, porque existem essas crises pré-estabelecidas pela humanidade. Ainda que ache isso uma bobagem, quando vi, estava dentro: uma angústia grande com o porvir, com a irreversibilidade das coisas. Mas aí vi as fotos do telescópio Hubble, em órbita desde 1990, e lembrei do Carl Sagan: somos apenas poeira de estrelas. E isso, de alguma forma, dá fôlego e esperança.

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