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Tragédia humana no palco urbano
Opinião

Tragédia humana no palco urbano

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Tipo Notícia

Domingo, por volta das 20 horas. O segurança do supermercado enfrentava em silêncio uma família de pedintes. Uma mulher negra com três filhos. Duas crianças que deveriam ter entre sete e cinco anos e um bebê com bem menos de dois. Pareciam saltar das páginas de O Quinze, de Rachel de Queiroz; de uma das telas de Os Catadores do Jangurussu, de Descartes Gadelha; do horror exposto em Retirantes, de Candido Portinari, ou ainda do barro esculpido pelo Mestre Vitalino. A mulher magra, a roupa imunda, os cabelos desgrenhados, os olhos estirados rumo à fartura inalcançável. Os meninos igualmente sujos se enroscavam na mãe. O bebê choromingou alto. Levou uns gritos enquanto era sacudido com força. Calou-se rapidamente, como se mesmo com tão pouca idade inferisse o que poderia vir depois. Passei entre eles. O segurança permaneceu no meio da porta. Silêncio dos dois lados da trincheira. A mulher ignorava completamente o funcionário. Olhos fixos em algum ponto além dele. Quando alguém entrava ou saía, ela pedia leite, pão, fraldas.  

A cena se tornou corriqueira. Abundante até. Farmácias, supermercados, sinais ao longo de diversas ruas e avenidas estampam uma miséria que se junta à paisagem. Aquela pobreza contida de anos atrás, que havia retirado das ruas dezenas de crianças e pessoas adultas sem perspectiva de um trabalho, parece estar transbordando em Fortaleza. O cenário urbano está mais turvo. O constrangimento, democrático. Ultimamente, tenho evitado olhar nos olhos das crianças que encostam as mãos estiradas no vidro do carro. Imagino aquela menina ou meninos em cinco, dez anos. Adolescentes, jovens. O que será deles?
 

No início do ano, li uma reportagem sobre o aumento alarmante dos moradores de rua em SP. Na Avenida Paulista, 25 mil criaturas moram pelas calçadas. No Rio, pessoas em situação de alta vulnerabilidade social triplicaram desde 2015. Este ano, dados do Pnad Contínua do IBGE apontam que a pobreza extrema no Brasil cresceu 11,2% , que representam 14,8 milhões que vivem com menos de R$ 136 por mês. Só no Nordeste, são 8,1 milhões de miseráveis. No ano passado, 800 mil se juntaram ao grupo que já era imenso.
 

Na última semana de abril, O POVO trouxe a comprovação que espelha as estatísticas preocupantes. Houve, sim, um aumento de “pessoas em situação de rua” na Cidade. A seca, a guerra das facções e o cenário econômico formam um conjunto de ingredientes perversos que engrossam o caldo da pobreza em Fortaleza.
 

Outro dia ouvi um dos candidatos a presidente da República no País afirmar ser contra taxar grandes fortunas e lançou mão do seguinte raciocínio: “Se tirarmos de quem tem para dar a quem não tem, daqui a pouco até quem tinha ficará sem nada”. Foi muito aplaudido por um grupo de empresários e simpatizantes. A ideia que está por trás dessa fala contrasta com a nova paisagem que inclui crianças sem infância, depois sem adolescência, depois sem vida.
 

Pôr um saco de pão, uma caixa de leite, biscoitos nas mãos de mulheres e crianças que rondam os supermercados da cidade pode aliviar a fome — e a nossa consciência — por alguns momentos. Mas a miséria continua fincada até na alma daquelas pessoas. O grave mesmo é quando levantamos a vista e percebemos o descaso com tal tragédia humana no grande palco urbano.

 

Regina Ribeiro
reginah_ribeiro@yahoo.com.br
Jornalista do O POVO

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