Marcus tem 55 anos e é taxista no ponto ao lado da minha casa. Ao longo dos anos, sempre que me levou a algum lugar, mal eu entrava no carro e informava o destino, ele já engatava uma espécie de monólogo compulsivo e estridente de um homem sem pausas nem ponto final.
Semana passada, eu sentei, fechei a porta do táxi e, quanto ele se virou para me cumprimentar, notei que algo havia mudado. Seu tom de voz estava mais baixo e não soava tão ansioso. A corrida começou e, de supetão, ele me contou que estava mudando de gênero. Sua identidade feminina havia se revelado aos seis anos de idade, com a fascinação que ele sentia pelas roupas da irmã. Mas lutou a vida inteira para se afirmar como homem. Seu pai era um sujeito bruto, que jamais entenderia nem aceitaria sua escolha. Em função disso, foi um adolescente e jovem muito “pegador” e se envolveu com bebida e drogas, como uma espécie de fuga e autopunição.
Casou-se cedo e teve um filho, hoje com 33 anos. Separou-se. Há 28 anos, casou-se novamente e tem uma filha, de 25 anos, além de cinco netos. Segundo me disse, sua atual e sua primeira esposa conheciam e aceitavam sua identidade. Ele sempre foi um cross-dresser na intimidade conjugal e é absolutamente apaixonado por mulheres. Nunca se interessou, nem se relacionou com homens.
Surpreso e feliz, foi chamado pelo SUS, quase três anos depois de ter se inscrito, para começar seu processo de mudança de gênero.
Sem nenhum pudor e com muita naturalidade, ele me contou sobre o tratamento hormonal, a terapia, a depilação a laser, a manicure, os oito quilos já eliminados, o tratamento capilar, o novo guarda-roupa e os detalhes das possíveis cirurgias de redesignação sexual e colocação de próteses mamárias.
Apoiado pela esposa, filha, irmã e cunhado, sente-se aliviado, íntegro e agradecido por, finalmente, poder sair do armário e ressignificar sua existência, num misto de euforia e medo. Um alinhamento do corpo à alma.
Que saibamos te acolher, Marcella! Com gentileza e respeito.
Neivia Justa
neivia@uol.com.br
Jornalista, executiva e criadora do movimento #ondestãoasmulheres