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Serenidade em tempo de cólera
Opinião

Serenidade em tempo de cólera

Edição Impressa
Tipo Notícia

Em momento de tensão interior ou de fúria exterior, gosto de recorrer ao Eclesiastes para reencontrar um pouco de serenidade. "Vaidade das vaidades, vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer... tempo para amar e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo

para a paz".

 

Ocorre que estamos vivendo um tempo malsão de arrogância individual e de facções doutrinais, projetando-nos uns contra os outros; um tempo de grande impaciência e de perturbações coletivas numa sociedade fragmentada. Temos a sensação de viver em um mundo que se desfaz ou já se desfez, tendo a tarefa de reerguê-lo diferente. Daí um sentimento coletivo de perplexidade e de transtorno, de impotência mesmo, que nos leva a atitudes e condutas fundamentalistas, totalitárias, cada um ensimesmado em seu apequenado mundo, nas suas certezas individuais ou tribais a querer impor aos outros seus deuses e seus demônios, seus ídolos. Nossa inquietude e nosso nervosismo diante de várias crises convergentes que nos assolam (política: de representação, de partidos ocos; moral: machismo/feminismo, gêneros, aborto; de violência: física e corrupção; econômica: desigualdade, desempregos, previdência, leis trabalhistas) nos leva a defender extremismos xiitas em busca de certezas que não temos; em busca, mais uma vez, de um grande irmão, salvador de uma pátria arruinada, sem nos dar conta que esse irmão não existe e que há vida depois da crise. O velho mito do sebastianismo está a nos perseguir novamente e a produzir decepções e ódio, a criar ídolos com pés de barro.

 

Nesse tempo de cólera, há necessidade de serenidade para sentir, pensar e agir com tranquilidade, reflexão e discernimento. Não temos que buscar bezerros de ouro a idolatrar, mas temos que criar um consenso majoritário em torno de valores e metas, à procura de meios para alcançá-los, passo a passo, reforma após reforma. A democracia é processo; ela é evolucionária. Ela é meio e fim, não ódio, nem totalitarismo; não é soberba, nem arrogante; ela não aceita extremismos, mas procura a tolerância, o respeito do outro na divergência, no contraditório, na oposição do adversário, nunca transformado em inimigo. É na sua fraqueza que a democracia encontra uma força inexplicável.

 

Apelar para a serenidade não significa aclamar a passividade e a indiferença, mas propor uma ação coordenada, um diálogo permitido, uma escuta esclarecida, uma troca de argumentos crítica e fundamentada. Não significa anular as divergências, mas esclarecê-las com zelo e competência em respeito ao outro.

 

Vivemos um tempo de cólera porque vivemos um tempo de descrenças e de incertezas; um tempo de personalismo exagerado, exorbitado pelas redes sociais onde são expressos abertamente frustrações, medos, convicções, preconceitos, arrogância face a inimigos fantasiosos perseguidos e reduzidos a bestas.Tempo de personalismo extremado que impede manifestações de racionalidade em busca de um bem maior.

 

Tempo de cólera, porque vivemos um tempo de descrença dos outros e das instituições, tempo que deve dar lugar à construção de um tempo de direitos individuais e coletivos, de conflitos produtivos e respeitosos e de livre manifestação da vontade de todos.

 

André Haguette

 

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