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Não tenho gatos
Opinião

Não tenho gatos

Edição Impressa
Tipo Notícia

Não tenho gatos. Mas algumas vezes convivi com eles dentro de casa. Na adolescência, minha irmã ganhou uma siamesa. Uma bichana de olhar celeste que ignorou impassível os protestos de meus pais a respeito de sua chegada. Foi ficando, até se incorporar ao apartamento. Fingiu ser um móvel novo em que se esbarra, a princípio, e que depois se torna invisível. A gata fez da jardineira da varanda sua suíte particular para banhos de sol e demais necessidades. Achou a sua própria maneira de se integrar à rotina familiar. Ela colecionou anos. Filtrou o tempo com seus bigodes. Abriu incontáveis e contagiantes bocejos. E protagonizou momentos pouco críveis a quem não tem gatos. Como nos meses em que, de volta ao lar da minha infância, vivi uma gravidez adiantada. Dizem que os cães veem coisas. Salve Moreira Campos! Mas os gatos olham através de portas fechadas. Aconteceu assim no dia em que ouvi a pancada no trinco de ferro, abaixado com o peso do corpo. Depois, os passos de pisar em pano, a subida na cama e o calor que senti quando se deitou ao pé da barriga, uma compressa viva, amornando os incômodos, as dores de virar mãe. Ali permaneceu sem qualquer cerimônia, certa do que fazia, até que eu não mais estivesse sozinha. Histórias como essa conhece bem quem tem gatos. São uns bichos imprevisíveis, surpreendentes mesmo. 

 

Divindades adoradas no Egito Antigo, símbolos de boa sorte no Japão. São animais belos. Os olhos, gotas de água sobre esmeraldas, topázios, safiras, citrinos. Eu costumava me perder nos olhos de um gato, lagoas lunares em que sempre me afoguei. O veludo que lhes reveste o corpo é um convite ao toque. Contudo, são criaturas de humor delicadíssimo. Disso não me deixa esquecer a pequena cicatriz que carrego na mão, desde menina, em decorrência de uma brincadeira malsucedida. São uns seres insubmissos. 

 

Nada os obriga. Fazem o que querem, comem o que gostam, dormem onde escolhem, não importa se cabem, se sobram, se inusitados são os lugares de sua preferência. Ninguém os subjuga. Sabem se defender. Mais do que isso, sabem do que um ser humano é capaz. Para o melhor e para o pior. E não olham as pessoas com a inocência dos cães, que docilmente se entregam à fúria do algoz, à porta de um supermercado. De alguma forma, por alguma razão, eles entenderam, bem nos primórdios de sua existência, algo sobre a natureza humana que talvez evitemos enxergar. E desenvolveram uma rara habilidade de catalisar energias ruins para manter a harmonia do ambiente que compartilham conosco. Quem sabe, quando nos miram com os seus olhos de expandir mundos, de conjurar feitiços, eles nos aprisionem. Ou apenas se vejam, se reconheçam em nós. Por isso, alternam as manifestações de carinho, de entrega, de confiança absoluta, com demonstrações de indiferença e exibições de crueldade para com os insetos e os animais de menor porte, capturados sob a maciez de duas patas. De todo modo, há muito o que aprender com os felinos. Considero um privilégio tê-los dentro de casa. Ainda que eu não tenha gatos. Não duvido de que eles me têm.

 

Marília Lovatel 

marilia.lovatel@fariasbrito.com.br

Escritora

 

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