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Dawisson Belém Lopes: A política externa da Madame Bovary
Opinião

Dawisson Belém Lopes: A política externa da Madame Bovary

Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Dawisson Belém Lopes 
Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG
 (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Dawisson Belém Lopes Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

Duas das melhores intelectuais deste país - Lilia Schwarcz e Heloisa Starling - referiram-se certa vez à nossa política externa por uma metáfora inusitada: segundo elas, o Brasil seria a Emma Bovary das relações internacionais.

Por alinhar-se aos europeus no século XIX e aos EUA no século XX, demonstrando simpatia pelos países Brics no início do século XXI, o comportamento nacional, aparentemente volúvel e errático, permitiria analogia com a personagem romanceada por Gustave Flaubert.

A rigor, a tese falha em apreender a tendência bicentenária da política externa brasileira. As mudanças de direção que houve, via de regra, resultaram de cálculo e determinantes estruturais, não de idiossincrasias e frivolidade.

O Brasil fez-se independente em 1822. Muito do pacto colonial permaneceu intocado. A inclinação europeísta da política externa era natural, portanto. Mas nada impediu que, a partir das décadas de 1840 e 50, o Brasil começasse a estranhar-se com a Inglaterra, potência da época, na busca por rumos próprios.

No início do século XX, diante da subida irrefreável de Washington, o País abraçou uma relação especial com os Estados Unidos - maiores compradores do nosso café e da nossa borracha.

O alinhamento, contudo, foi matizado. A adesão ao "campo de força" de Washington na Segunda Guerra foi negociada. Durante a Guerra Fria, não foram raros os desentendimentos com Brasília. Não aceitamos, por exemplo, subscrever as investidas políticas ianques em Cuba (1961) ou no Iraque (1990-91).

Notar, ademais, que a elevação da China à condição de maior parceira comercial do Brasil, em 2009, jamais trouxe como corolário o alinhamento incondicional. Apesar da aproximação, a relação rege-se pelo pragmatismo - e até por certa desconfiança.

Em 2019, porém, Madame Bovary parece ter - finalmente - assumido o leme da política externa. E, como na ficção, é provável que o saldo de suas aventuras não resulte positivo para as partes envolvidas.

O que vemos é inédito: em bases ideológicas e ignorando os vetores diplomáticos, econômicos e tecnológicos, o Brasil favorece o governo de Donald Trump, em detrimento de outras alianças estratégicas.

Uma fidelidade ingênua e caprichosa, que deságua em aberrações como a indicação do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, à chefia da Embaixada em Washington, e as concessões unilaterais aos Estados Unidos nos campos comercial, consular e militar. 

 

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