Não se assustem se, mais dia, menos dia, um procurador de Justiça brasileiro disser que existiu escravidão no País porque o índio era preguiçoso. Ou que nenhum reparo histórico deve ser feito aos quilombolas, já que ninguém tem um navio negreiro estacionado em casa. Não se assustem se o dirigente de uma entidade voltada para a preservação da memória dos negros afirmar que não há racismo no Brasil e que o 20 de Novembro é uma data qualquer. Ou se um ministro de Estado ameaçar manifestantes com a reedição da principal medida de exceção do regime militar, o Ato Institucional nº 5.
Não se assustem se a ministra dos Direitos Humanos for desumana, o da Educação abominar as universidades, o responsável pela Cultura enxovalhar a arte nacional e o do Meio Ambiente degradar florestas e mares. Não se assustem se, apesar de tudo isso, um auxiliar palaciano mais cheio de si lhes disser para não se assustarem se o uso da força se tornar incontornável.
Nada é retórica improvável ou hipótese fantasiosa. Tudo é possível, concreto, dentro do nosso horizonte de expectativas. Os achaques e os nomes adotados como símbolos são o que são, e nenhum lastro de institucionalidade os constrange. O partido é Aliança e atende pelo 38. O presidente perverte a estrutura do Estado a fim de retaliar adversários e assediar jornais.
Se há algo que assusta, é como a palavra se desnudou. Não há metáfora possível no Brasil de hoje. Não há passado - se há, estão a reescrevê-lo, de modo a adequá-lo. Tudo é literal. Daí a dificuldade dos analistas. Em vão, esforçam-se para entender as mensagens como se ainda atravessadas por um sentido não imediato. É um exercício de fé amparado num tempo antigo, quando as coisas talvez não significassem o que imaginávamos que significavam.
Mas o nosso agora é diferente. Tudo é o que é. Os recalques se desataram, liberando o esgoto. Os bloqueios ruíram. E as vergonhas se revelaram, agora desavergonhadas. Alguns anos atrás, um ministro que defendesse explicitamente o mecanismo antirrepublicano da repressão não teria outro destino senão o opróbrio e o olho da rua. Hoje vê-se que é possível conciliar a vocação autoritária com o cargo público.