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Rosemberg Cariry: O monge cearense
Opinião

Rosemberg Cariry: O monge cearense

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Rosemberg Cariry, cineasta e escritor (Foto: Deísa Garcêz/Especial para O POVO)
Foto: Deísa Garcêz/Especial para O POVO Rosemberg Cariry, cineasta e escritor

Conta uma anedota popular que um jovem cearense, influenciado pela leitura de alguns livros sobre budismo, resolveu ser monge. Viandante, como todo bom cearense, viajou para o Japão, apresentou-se em um mosteiro budista Zen e iniciou o seu noviciado. Durante dez anos dedicou-se aos estudos dos livros sagrados e de meditações, sob a orientação de sábios mestres que, ao perceberem que ele estava pronto, deram-lhe a túnica amarela, o cajado e a tigela de monge. Foi aconselhado de que, para a formação de um bom monge, era preciso mais: isolar-se durante mais dez anos em uma floresta, morando em uma caverna, levando uma vida de profunda meditação. Completando o ciclo, o monge cearense sente-se, por fim, apto a pregar pelas aldeias e amealhar os seus primeiros discípulos. Assim o fez. Em uma das primeiras reuniões, debaixo de uma árvore frondosa, falou sobre os caminhos retos e sobre a iluminação. Um discípulo, mais curioso, perguntou-lhe: "Mestre, o que é a vida?". O monge cearense fechou os olhos em meditação profunda, e, depois de alguns segundos, respondeu, cheio de certeza, encarando de forma altiva o seu discípulo: "A vida, meu filho, é um rio". O discípulo inquietou-se: "Um rio, mestre?". Diante do questionamento, o monge cearense, em crise de dúvida, titubeou: "E né não?!".

Gosto muito dessa anedota, tão simples, e, ao mesmo tempo, tão sábia. Um dos mais caros preceitos do budismo é a "não certeza", nem mesmo a certeza do Mestre. É preciso desconfiar do pastor e "da arma oculta na sua mão" (Agnus Sei, de João Bosco e Aldir Blanc).

Nos dias de hoje, onde a maior parte das informações que circulam na web são falsas ou manipuladas, em um verdadeiro tsunami de mentiras e de simulacros que conspira contra a democracia e contra a vida, deveríamos desconfiar, para não estarmos reafirmando e difundindo mentiras. Precisamos desconfiar até mesmo dos ensinamentos da tradição, da certeza dos ditos e dos provérbios antigos. Faz falta, no mundo de hoje, o estatuto da dúvida, essa inquietação da alma que funda a filosofia. 

 

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