Uma das diferenças entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos é que, nos primeiros, políticas públicas se baseiam em pesquisa, e nos segundos, em "achismo". O decreto do presidente Bolsonaro liberando o uso de armas de calibre militar para uso de civis se enquadra nesses últimos. Nem fundamentação tinha. Dei consultoria para o governo de El Salvador, e medidas de controle de armas estavam reduzindo a violência, quando a pressão dos importadores de armas liberou o uso de calibre 9 mm, como aqui. Resultado: o país se tornou o mais violento do mundo. Mas está na moda atacar a ciência, e baseados em ignorância e preconceitos, defender o terraplanismo e recusar vacinas.
Ao apelar para a "autodefesa" do cidadão, o governo regride à Idade Média, quando o rei só protegia a corte e o território, e os súditos que se virassem. A República trouxe a defesa de todos pelo Estado, investindo em boa polícia, caso contrário só os ricos terão segurança privada e armas caras. Mas se quer que "o Estado seja forte com os fracos e fraco com os fortes", como dizia Octávio Paz. A autodefesa é um suicídio, demonstram as pesquisas, porque o fator "surpresa" favorece o assaltante. Em média, de dez que reagem com arma, sete são baleados (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Não temos que inventar nada, é só olhar a experiência internacional. Os Estados Unidos de Donald Trump sofrem em média um massacre por mês. A Austrália, que fez a maior campanha de desarmamento voluntário do mundo, reduziu em 50% os homicídios por arma de fogo. No Brasil, com o Estatuto do Desarmamento, baixamos em 13%. Não foi mais porque faltaram as outras reformas, como melhorar a polícia, o sistema prisional e o Judiciário, que na Austrália são de qualidade. Mesmo assim, os controles trazidos pela nossa Lei salvaram 197.202 pessoas em 12 anos (Ipea).
70% dos brasileiros são contra o porte de arma (Datafolha). Mas o governo, fugindo ao debate público, vem corroendo em silêncio a nossa Lei, através de decretos e graduais mudanças pelo Congresso Nacional. A Câmara dos Deputados já concedeu porte aos 350.683 CACs (Colecionadores, Atiradores esportivos e Caçadores), e ameaça estendê-lo para mais dez categorias. Esperemos que o Senado Federal respeite o eleitorado e anule essas mordidas na Lei.