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Juliana Diniz: Idosos ou economia: um falso dilema
Opinião

Juliana Diniz: Idosos ou economia: um falso dilema

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Juliana Diniz, doutora em Direito e professora da UFC (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Juliana Diniz, doutora em Direito e professora da UFC

Em 1970 Simone de Beauvoir publicou a obra A velhice. Nesse ensaio, a autora francesa reflete sobre os efeitos do avanço da idade e questiona as razões pelas quais o Ocidente é tão insensível ao "tema proibido" da velhice: "para a sociedade, a velhice aparece como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar". Beauvoir propõe então quebrar "a conspiração do silêncio" e colocar em debate um tema que "perturba a tranquilidade" dos jovens: todos vamos envelhecer; de que forma lidamos social e individualmente com esse processo?

No argumento de Beauvoir, a insensibilidade social com a velhice é explicada pela lógica de funcionamento da sociedade do consumo. Os velhos, com sua capacidade de produção reduzida, acabam se tornando uma espécie de "fardo" social em um modelo que prima pela expansão e abundância econômica. Sua condição de sujeito se esmaece à medida que a idade avança - a autonomia de decisão se deteriora na mesma velocidade que os ossos, o futuro se torna uma incógnita não só pela iminência da morte, mas porque sua sorte se subordina às necessidades dos que são capazes de conduzir.

Esse funcionamento cruel tem sido exposto com o falso dilema que tomou os jornais durante a semana. Com os efeitos cada vez mais sensíveis do isolamento decretado em cadeia por todos os governadores estaduais, a pressão de atores econômicos pelo afrouxamento das medidas de contenção se intensifica. Segundo a lógica do mercado, é preciso fazer a máquina voltar a operar, mesmo quando o mundo está às voltas com uma pandemia sem magnitude. Diante da ameaça do colapso dos sistemas de saúde, se desenham as projeções de colapso da economia.

O padrão de disseminação e letalidade do coronavírus é a causa do falso dilema. Para a maior parte da população jovem e saudável, a doença se apresenta nas suas formas leves. Embora o vírus possa ser perigoso a todos, como indicam os números do Ceará (mais da metade dos infectados até esta semana estavam na faixa dos 20 aos 49 anos), a doença é especialmente devastadora em quem tem mais de setenta anos: é nesse extrato que acumulamos mais perdas até aqui, um número que não para de crescer, dia após dia.

Para o mercado, como os jovens estão menos expostos à morte, é preciso mandá-los de volta aos seus postos de trabalho, menosprezando-se o potencial de contágio dos idosos que a suspensão precoce do isolamento pode provocar. Todos ouvimos, incrédulos, declarações de empresários e políticos que minimizam as perdas humanas já contabilizadas até aqui numa lógica utilitarista pouco confiável: agentes do mercado tentam dar ares de sacrifício cívico a um sofrimento humano que pode ser evitado.

Pois retorno a Beauvoir para que pensemos na inviolabilidade da vida humana como um valor ético superior. Na forma que tratamos nossos idosos está espelhada nossa concepção de humanidade: "aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles". Em Bergamo, na Itália, as recomendações sanitárias foram ignoradas, e o desfile mórbido de caixões não tardou. No que depender do mercado, repetiremos o erro. Esse peso e essa culpa caberá a nós, como sociedade, carregar.

 

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