Calma, não foi o coronavírus que causou essa tragédia e sim a varíola; e ela não aconteceu agora, mas há 141 anos. E aconteceu em só um dia: "o dia dos mil mortos", como ficou conhecido à época.
Vinda do exterior e de províncias vizinhas, a varíola irrompeu no Ceará durante a seca de 1877-1879, vitimando pelo menos 60 mil dos 100 mil retirantes que vieram para Fortaleza em busca de socorro. A capital tinha então 42 mil habitantes e durante a seca saltou para mais de 140 mil e não tinha estrutura para tamanho inchaço populacional. Por todos os cantos amontoavam-se retirantes famintos, esquálidos e maltrapilhos suplicando guarida e comida.
Como a Covid-19, a varíola era um vírus que se transmitia por contato com o infectado ou com objetos que ele tocara. Mas, era mais letal e mais cruel: criava bolhas com pus em todo o corpo que coçavam e doíam intensamente; os que sobreviviam ficavam com cicatrizes e/ou com nariz esburacado e cegueira.
Existia a vacina contra a varíola, vinha do Rio de Janeiro, mas não era confiável e ninguém tinha se vacinado quando a moléstia se alastrou rapidamente entre os retirantes que lotavam a cidade. Doze abarracamentos foram montados pelo governo na periferia para isolá-los do convívio com os citadinos, deixando os flagelados mais vulneráveis à doença, pois a aglomeração de milhares em cada abarracamento favoreceu o contágio.
Assim como hoje, a Fortaleza da época também tinha um hospital específico para doenças infecciosas, o Lazareto da Lagoa Funda, construído em 1859 para tratar dos acometidos pela epidemia de cólera. Dispunha de 300 leitos, mas os infectados eram milhares. Outros lazaretos foram improvisados para atenuar a mortalidade que crescia a cada mês.
A varíola, assim como o coronavírus, não escolhia vítimas: os retirantes eram os mais atingidos porque estavam debilitados e aglomerados nos abarracamentos, mas a peste matou até gente que se julgava protegida, como a esposa do presidente da província. Depois disso, o medo ficou ainda maior.
Tal como a Fortaleza da Covid-19, a Fortaleza da varíola fez o comércio fechar e a população ficar em casa. Segundo Rodolfo Teófilo: "Tinha Fortaleza o aspecto de sombria desolação. O comércio completamente paralisado dava às ruas mais públicas a feição de uma terra abandonada".
A varíola ceifava menos de 300 pessoas diariamente e isso já era alarmante. Porém, o que ninguém imaginava aconteceu: a cidade entrou em pânico ao saber da morte de 1.004 pessoas num único dia - 10 de dezembro de 1878. Até hoje, em canto nenhum do planeta se tem notícia de tanta morte causada por uma epidemia em apenas 24 horas em uma cidade.
Em 1880, enfim as chuvas retornaram, a varíola cessou (mas retornaria nas secas de 1888 e 1900, vitimando menos) e os retirantes que sobreviveram retornaram para o sertão ou ficaram em Fortaleza, aumentando o contingente de pobres e mendigos da cidade.
O farmacêutico Rodolfo Teófilo fez o que o governo da época não fez: fabricou a vacina e vacinou sozinho e em domicílio a população durante quatro anos e erradicou a varíola em Fortaleza em 1904. Foi condecorado pelo governo federal por isso. Só em 1980 a moléstia foi erradicada no mundo todo.