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Liduína Rocha: Quantas vezes mais precisaremos morrer?
Opinião

Liduína Rocha: Quantas vezes mais precisaremos morrer?

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Liduína Rocha
Médica obstetra, integrante do Coletivo Rebento Médicos em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS
 (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Liduína Rocha Médica obstetra, integrante do Coletivo Rebento Médicos em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS

100 mil é um número simbólico. Quando criança, imaginava que era o número que dividia os ricos dos pobres! Quem tem 100 mil deve ser rico, eu pensava. Depois, já crescida, descobri que 100 mil ou é dívida ou a ilusão do pertencimento ao lugar de privilégio!

Há cinco meses estávamos, todos e todas, com muitas preocupações sobre a Covid e sua visita indesejada. Parte da angústia vinha do medo de estarmos em condição de igualdade, na mesma exposição! Uma doença de europeus, ou de quem pode se mover entre continentes. Parecia uma "praga", uma condição que subvertia os lugares sociais de privilégio. Ela veio como um Carnaval, atingiu aldeia, Aldeota, mas bateu mesmo na porta de quem vive a se aperrear.

100 mil mortes depois, tudo parece mais "tranquilo", esclarecido. Algum conforto foi restabelecido: a nossa desigualdade. A Covid foi se impondo, morremos, mas não em condições de igualdade, nem nos igualando. As barreiras de acesso e assistência foram se revelando, e o SUS (Sistema Único de Saúde) foi se mostrando como o território que resiste, que busca equidade, que nos humaniza.

Chorei várias dessas mortes, algumas porque me revelavam o que a filosofia chama de "bom e belo", o conceito socrático de vida. Aldir Blanc se foi, ficamos bêbados. Perdemos o equilíbrio.

Chico se foi, vocês não o conhecem, mas eu me despedi da inocência da serra, do sertão. Chico não morreu pela Covid, foi o seu lugar social que o matou.

Quantas dessas 100 mil mortes poderiam ser evitadas? Quantas mortes se devem à ilusão de medicações que são "ouro de tolo" calculadas milimetricamente pela régua eleitoral?

Quantas dessas mortes são de negras e negros? Quantas mortes maternas? Quantas vidas a menos?

Estamos falando de pessoas, e cada uma delas, deles, é uma dimensão que nenhum número compreende! É a humanidade que morre. E é a humanidade que pode nunca mais renascer!

Morremos 100 mil vezes no Brasil. Morremos pelas escolhas das políticas públicas, pela falsa escolha da economia, pela ilusão da cura. Em última instância morremos pela classe, pela raça, pelo gênero. Não pela Covid, por nossas escolhas históricas.

Quantas mais 100 mil vezes precisaremos morrer? 

 

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