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Juliana Diniz: Como as democracias resistem ao fim
Opinião

Juliana Diniz: Como as democracias resistem ao fim

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Tipo Notícia Por
Juliana Diniz
Doutora em Direito e professora da UFC
 (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Juliana Diniz Doutora em Direito e professora da UFC

A tensão que nos faz acompanhar a apuração dos votos nos Estados Unidos não é despropositada: o resultado eleitoral daquela que é considerada a maior democracia no mundo não só aponta os novos rumos da geopolítica, como pode antecipar os humores da próxima eleição para presidente no Brasil. A vitória de Trump representaria um fôlego adicional para a onda de populismo de extrema direita que varreu muitas democracias pelo Ocidente. Trump a personifica bem ao defender uma visão de política como oposição ao inimigo, o fortalecimento do protecionismo nacionalista, a negação da importância da diversidade cultural e o questionamento do consenso em torno dos direitos humanos.

A sua derrota, em contrapartida, não só levará governos alinhados a essa retórica a repensar estratégias eleitorais futuras, como terá impactos em políticas em curso. No Brasil, essa realidade é muito perceptível, especialmente em matéria ambiental: Ricardo Salles tem sua presença no Ministério do Meio Ambiente ameaçada e Ernesto Araújo, com seu discurso antiglobalismo e saudosista do mundo medieval, talvez seja um chanceler exótico demais para negociar com um parceiro comercial liderado por Joe Biden.

Por todos esses motivos, vale a pena pensarmos sobre a narrativa da eleição americana, dadas as semelhanças de estilo e de discurso entre Trump e Bolsonaro. Foi uma eleição tensa, por várias razões: a polarização extrema da sociedade americana, a tensão de manifestações que respondem a casos intoleráveis de violência policial contra a população negra, os efeitos intensamente devastadores da pandemia do coronavírus. Mais do que isso, é uma eleição tensa porque o presidente da república em exercício afirmou reiteradas vezes a sua intenção de não aceitar um resultado desfavorável.

Trata-se do maior teste de estresse que uma democracia constitucional pode sentir: a dúvida lançada sobre a legitimidade dos procedimentos de escolha dos representantes futuros, sobre a confiança dos mecanismos de alternância do poder que estão previstos na lei. Ao desacreditar o sistema eleitoral, Trump acirra a polarização e convida os seus seguidores mais irracionais a gestos extremos de violência e de desordem social.

Por características próprias do sistema americano, observamos um cenário de risco: uma apuração lenta, arrastada, confusa, onde o voto popular pode não levar à eleição do futuro presidente. Ao contrário da maioria das democracias constitucionais, que contam com sistemas mais céleres de organização administrativa das eleições, os EUA nos convidam a testemunhar dias e talvez semanas de dúvida quanto ao futuro em estado de grande ansiedade, em meio a tentativas reiteradas de Trump de tumultuar o processo.

O país tem resistido belamente. Os votos são contados, apesar do assédio do presidente da república: suas iniciativas judiciais são recusadas com rigor. Muitos prognósticos tristes sobre o fim das democracias foram escritos nos últimos anos. Os EUA talvez estejam nos mostrando como uma democracia resiste: com a serenidadade das instituições que conduzem uma boa eleição. n

 

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