Eu senti muita dificuldade de dormir à noite depois de ouvir os relatos de médicos, enfermeiros e familiares em Manaus, numa busca desesperada pelo oxigênio que permite aos doentes de Covid respirar. "Por favor, por favor, acabou o oxigênio". "Façam alguma coisa, pelo amor de Deus". Um diretor de hospital liga aos prantos para um procurador da República que relata ao jornalista do jornal O Estado de S. Paulo o cenário inexplicável - as autoridades permitiram o colapso do sistema ao deixar faltar um insumo fundamental: o ar. Pacientes de unidades inteiras morrendo em agonia por asfixia. Sessenta bebês prematuros à espera de transferência para outro estado. Uma tragédia previsível, e, por isso, evitável.
Tentar vislumbrar o que acontece no interior dos hospitais amazonenses é um convite ao assombro moral e ao desespero, e nos aproxima dos medos mais primitivos que alimentam o instinto de sobrevivência - o medo do fogo e da água. Porque a morte em asfixia por falta de oxigênio é como afogar-se, uma morte em sofrimento, testemunhada pela impotência dos que, ao lado, nada podem fazer a não ser chorar ou, num gesto igualmente desesperado, aplicar morfina para amansar a angústia da morte.
Como podemos dar conta do desespero de testemunhar uma tragédia humanitária de tamanha proporção? O que seria possível para nós, os impotentes, fazer diante do sofrimento imenso dos que padecem em Manaus?
Para responder a essa angústia, vou às linhas do escritor italiano Primo Levi, um dos sobreviventes do holocausto. Após ser libertado de um campo de concentração, Primo Levi dedicou-se a escrever sobre a memória do horror, sobre o trauma da guerra. Um de seus livros mais pungentes tem por título Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades e nos apresenta o dever ético que tem uma testemunha da história, o dever de registrar e manter vivo o passado. É esse testemunho que nos permitirá elaborar responsabilidades.
"Fomos capazes, nós sobreviventes, de compreender e de fazer compreender nossa experiência?" é a pergunta que Primo Levi se faz. Teremos nós, brasileiros, a capacidade de entender e fazer compreender como fomos capazes, enquanto sociedade, de entregar o poder a homens tão abjetos moralmente, tão incapazes e perversos? Que culpas carregam os que tem a possibilidade de impedir o agravamento da tragédia e não o fazem? Qual o peso da inércia?
Escrevo para fazer o pouquíssimo que me é possível nesse cenário de luto: registrar, descrever, documentar. Não só a dor, mas o absurdo do crime, porque o futuro nos trará bem mais que o remorso, nos trará o dever de reparação e de compromisso com a verdade.
O presidente da República considera ter feito tudo que lhe cabe, ou seja, nada. "Todos vamos morrer um dia" e ele não é coveiro. Sua indiferença é uma nova forma de matar os desassistidos. Como escreveu Levi, "antes de morrer, a vítima deve ser degradada, a fim de que o assassino sinta menos o peso de seu crime. É uma explicação não carente de lógica, mas que brada aos céus: é a única utilidade da violência inútil". Bradar aos céus o inexplicável: eis a única capacidade do nosso presidente inútil.