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Sobre a palavra saudade
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Sobre a palavra saudade

Tipo Opinião
Regina Ribeiro
Jornalista do O POVO
 (Foto: Iana Soares/O POVO)
Foto: Iana Soares/O POVO Regina Ribeiro Jornalista do O POVO

A primeira pessoa de quem eu senti saudade na vida foi da minha avó Júlia, mãe do meu pai. Mesmo morando distante, ela me mandava vestidos para as minhas bonecas. Eram lindos, cheios de detalhes em fitilhos e renda, bainhas minúsculas impecáveis. Minha avó ficou quase cega e só depois que eu cresci, percebi o trabalho que ela tinha com aqueles vestidos em miniaturas. Quando me recordo deles, lembro da minha avó como a pessoa que me ensinou a sentir saudade.

Essa palavra intraduzível, sonora e bonita pode dizer tanto, sem que se precise explicar muito. Basta falar: estou com saudade e tudo se encaixa, fica perfeito como os vestidos nas bonecas que não cresciam, ao contrário da mãe delas que, à medida que esticava, reduzia o apreço pelas filhas de plástico de olhos azuis, cílios armados, bocas sempre querendo sorrir.

A saudade é um sentimento forte e fluido. Tão forte que chega a tocar em algum canto da alma que parece ter sido reservada para a saudade. Percebi, depois de adulta, que o que sentia com a ausência da minha avó é a mesma coisa até hoje. Algo se instala e inunda o pensamento por dias, por mais ocupada que se esteja, exige a presença, apura forma e cheiro. Os mínimos gestos ganham realce: um sorriso, um toque e qualquer acontecimento sem nenhuma relevância explode de significados impensáveis.

Agora mesmo ando com saudade dos meus livros. Ontem, esse sentimento que parecia tão leve, embora vivo, tornou-se vigoroso depois que eu li uma matéria sobre o destino da biblioteca do Umberto Eco. O governo da Itália e os herdeiros dividiram a biblioteca de 20 mil exemplares: os incunábulos e livros raros foram para a Biblioteca Nacional Braidense em Milão, os demais seguem para a Universidade de Bolonha, onde Eco foi professor emérito.

Procurei meus livros de Umberto Eco e não estavam comigo. Fiquei imaginando que sua biblioteca de livros antigos foi a fonte de O nome da rosa, Baudolino, A misteriosa fama da rainha Loana, O Cemitério de Praga. De lá saíram ensaios maravilhosos como o que abre o livro Idade Média: Bárbaros, cristãos e mulçumanos. Há muitos anos, eu li que livros são como pessoas que nos acompanham pela vida afora. Talvez por isso, saudade seja palavra certa para se falar de uma ausência. Senti saudades do escritor também, pelos livros que nunca mais ele escreverá. 

 

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