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Rosemberg Cariri: Estranhos frutos, a canção e a realidade
Opinião

Rosemberg Cariri: Estranhos frutos, a canção e a realidade

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Rosemberg Cariry, cineasta e escritor (Foto: Deísa Garcêz/Especial para O POVO)
Foto: Deísa Garcêz/Especial para O POVO Rosemberg Cariry, cineasta e escritor

Estive escutando a música "Strange Fruit" (Estranho Fruto), de Lewis Allan, cantada por Nina Simone (EUA), que fala de uma sociedade tomada pelo ódio: "Árvores do sul/ Carregam frutos estranhos/ Sangue nas folhas/ E sangue nas raízes."

No Brasil, durante séculos, cortaram florestas, plantaram cana-de-açúcar, café, fumo, algodão, implantaram a escravidão - do negro da terra (índios) e do negro da África, e semearam a dor, o sangue, a vergonha de um país colonizado, cuja classe dominante sempre viveu e vive da exploração mais desumana. Hoje planta soja, e o sangue continua jorrando nas raízes.

A voz de Nina, falando de linchamentos, é uma navalha a nos cortar a alma: "Corpos negros/ Balançando na brisa do sul/ Fruto estranho pendurado/ Das árvores de álamo." Sem colheitas, aqui os estranhos frutos caem no chão, varados pelas balas ou vitimados pelas pandemias e outras mazelas.

Uma emoção que cresce em intensidade, quando vivemos a tragédia causada pela Covid-19, diante do descaso do governo federal e da quase totalidade das classes dominantes brasileiras.

Os campos da morte se alastram. Esses corpos amontoados em sacos plásticos, quem são? O de cima José, o operário da construção civil; o corpo que agonizou no corredor do hospital é de Maria - cabeleireira (mãe de sete filhos); o caído no chão, ao lado da enfermeira rendida, é de Carolina - a florista; na cova comum, mais larga, estão Antônio, Rosa, Claudinor, Francisco, Madalena, Cícero, Gertrudes, Marion, Pedro, Celestino, Leidiana... Centenas de milhares de pessoas cujas histórias se perderam... Em quanto tempo se dizem os nomes de trezentos mil mortos? E se fôssemos contar as suas vidas e narrar as lágrimas e as dores de seus familiares e amigos, quantos anos levaríamos?

Pesa um estranho silêncio, a imobilidade da morte, em um país que se decompõe. No Brasil, os estranhos frutos não balançam nas árvores, mas agonizam nas favelas e nos corredores dos hospitais, são amontoados em valas comuns.

Estranhos frutos de um país que, perdido de si mesmo, hoje assiste bestializado ao plantio do ódio e da morte. É intensa a resignação dos que marcham em silêncio para os matadouros. Onde está a dignidade da insubmissão? 

 

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