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Uma lição de humanidade
Hélio Leitão

Uma lição de humanidade

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Conheci o professor César Barros Leal nos idos da segunda metade da década de 1980. Na velha Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, onde fui seu aluno. Direito Penitenciário era a disciplina (então chamávamos cadeira) que ministrava com intensa paixão e brilho intelectual. Jovem de vinte e poucos anos, iniciava-se ali uma experiência que me marcaria a alma.

Além de haurir os conhecimentos próprios à disciplina, transmitidos com leveza e humildade, calou-me fundo o comprometimento daquele homem com a causa de um sistema de justiça penal mais justo, que fosse pautado pela observância das regras do direito internacional dos direitos humanos, pelos valores consagrados na constituição, pela legalidade.

Vivíamos ainda o processo constituinte que veio a dar na Constituição de 1988, tomada a velha Salamanca por uma efervescência intelectual e política própria àqueles tempos.

Em suas aulas buscava aliar teoria e prática. Partilhava suas experiências e vivências. Por suas mãos transpus por primeira vez os umbrais de uma unidade prisional, o hoje inexistente IPPOO - Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira, conhecendo de perto aquele universo ao mesmo tempo trágico e mágico.

Começava a ganhar contornos, à época, o que viria a ser a Creche Amadeu Barros Leal, assim batizada em memória de seu pai, advogado sensível à questão da infância, empresário pioneiro que marcou época na cidade nos anos 1950 com a empresa Cinemar - Empresa Cinematográfica do Ceará e suas salas de cinema, cujos nomes remetiam à saga e tenacidade do jangadeiro, símbolo mais expressivo da cearensidade - eram os Cines Jangada, Atapu, Araçanga, Samburá e Toaçu.

Contrapunha-se ao domínio da filmografia estadunidense imposto pelo grupo Severiano Ribeiro, que era a mais poderosa empresa do gênero no país. Amadeu Barros Leal apresentou ao público da pequena Fortaleza o que de melhor havia na filmografia europeia.

Tornada realidade, por anos funcionou a creche ao lado do presídio feminino, destinada a crianças filhas de internas do vizinho presídio. Atendia, em seus começos, a não mais que vinte crianças, que conviviam durante o dia com suas mães presas. Data de então minha primeira visita à creche.

Experiência vitoriosa, hoje a creche assiste a quase duas centenas de crianças, parte significativa das quais filhos e filhas de internos e egressos do sistema prisional.

A iniciativa é a síntese da alma inquieta de seu idealizador que, indo muito além da cátedra e da produção intelectual comprometida com a difusão dos postulados do humanismo, parte para o plano da ação concreta e torna melhor a vida dos mais vulneráveis, dos que mais necessitam. Tenham seus pais cometidos crimes ou não.

Muito mais do que uma creche, temos ali uma lição de humanidade que nos faz persistir na crença de que outro mundo é possível.

 

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Hélio Leitão

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