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Sebastião Ponte: Eu, Fortaleza
Opinião

Sebastião Ponte: Eu, Fortaleza

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Estou completando 296 anos. Nasci em 1654, em torno do forte de Nossa Senhora de Assunção, por isso meu nome Fortaleza. Permaneci como povoado até 13 de abril de 1726, quando fui elevada à condição de Vila por decreto do real e passei a ser capital da Capitania do Ceará. Em razão disso, a data foi designada como sendo a do meu aniversário.

Me criei entre muitas águas: o riacho Pajeú me amamentou, o mar me banha, quatro rios me vivificam, mas das muitas lagoas onde eu me contemplava feita uma Narcisa dos trópicos restaram poucas. Foram aterradas para dar lugar a casas, prédios e bairros, como a Cidade 2000.

O sol gosta tanto de mim que me alourou, me desposou e me namora o ano inteiro. Isso e minhas belezas litorâneas atraem muito turistas, porém gostaria que apreciassem também meus atrativos culturais, como o Teatro J. de Alencar, os museus e o Parque do Cocó.

Bom lembrar que foi aqui que criaram a primeira academia de letras e o primeiro grêmio literário mais original, irreverente e brincalhão do país, a Padaria Espiritual. Por falar em irreverência, assumo que sou mesmo amolecada, célebre por vaiar quem se mete à besta (inclusive o sol, em 1941) e por ter tido como mascote o boêmio bode Ioiô, que elegemos vereador em 1922.

Se necessário, também sou muito séria e corajosa: depus o eterno oligarca Acioly através de uma revolta popular armada com tiroteios e barricadas e, em 1881, meus jangadeiros não embarcaram mais escravos para o sudeste, greve que precipitou a abolição dos escravos no Ceará.

A partir dos anos 1980, porém, por conta de descasos do poder público e dos interesses do poder privado, cresci desordenadamente e me tornei assaz contraditória e desigual. Ostento desde coisas de primeiro mundo a quase mil favelas, daí os muitos problemas de moradia, acessibilidade, mobilidade, violência etc. Mudei muito, às vezes não me reconheço me vendo nos tantos edifícios espelhados.

Meus moradores, até os mais pobres, dizem ainda gostar de mim. Mas não era assim que eles queriam que eu fosse, e nem eu: queria ser uma cidade onde a maioria morasse e vivesse bem. Quem sabe, um dia...

 

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Sebastião Ponte

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