Embora irreparável a recente perda de Milton Gonçalves, estas linhas são sobre outro Milton. Um anônimo, de sobrenome Sanca. De Guiné-Bissau. E cuja família por pouco não se viu forçada a enterrá-lo num cemitério público, na periferia de Fortaleza, dado o completo descaso do estado brasileiro diante da morte de um imigrante africano.
Nenhum ente federativo viabilizou o envio do corpo de Milton ao país dele. Prefeitura, Estado, Embaixada de Guiné. Todos cientes e silentes. Difícil crer, mas pelo simples fato de não ser Sanca um cidadão brasileiro, nenhum dispositivo legal, em pleno 2022, obriga o poder público a praticar algo que sequer deveria necessitar de lei: a empatia. Afinal, o que são R$ 40 mil para um país que ainda permite um Exército adquirir R$ 3,5 milhões em próteses penianas?
Era esse o valor - R$ 40 mil - que a família precisava para o traslado do corpo. Mas solidariedade mesmo só teve dos poucos que aderiram a uma campanha tocada nas redes sociais e, após 30 dias, com o corpo de Milton ainda num congelador, arrecadou só R$ 35 mil. Redes sociais essas que arrecadaram mais de R$ 120 mil em menos de 48 horas para Jesse Kozehen, catarinense morto num acidente de trânsito nos EUA, voltar à sua terra-natal.
As duas campanhas aconteceram ao mesmo tempo. A diferença é que Milton é preto, pobre e oriundo de um lugar historicamente alijado na construção de boas referências do nosso imaginário. Nem o fato de Sanca ter quatro filhos dependentes integralmente dele para comer e terem um futuro incerto diante do fim do pai sensibilizou a Internet. Nem a ampla visibilidade das reportagens publicadas em O POVO, noutros portais e TVs tocou o coração das pessoas tanto quanto o caso do homem branco.
Sejamos francos. Dor de gente preta não comove. E solidarizar-se com uma pessoa branca ignorando o sofrimento de uma pessoa preta é racismo. Aprendi com uma tia, já ancestral, que "a verdade encurta o caminho". E a verdade é que Milton foi um imigrante cuja vida o estado brasileiro "reconheceu" apenas enquanto contribuiu com a economia do país. Na morte, esse estado, em minúsculo mesmo, lavou as mãos. O Brasil não foi digno de ti, caro irmão preto. Estás em casa, agora, apesar disso. Perdoe-nos. E descanse.