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Paulo Antonio deM. Albuquerque: Ruminantes. a história de Manarairema
Opinião

Paulo Antonio deM. Albuquerque: Ruminantes. a história de Manarairema

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Paulo Albuquerque, professor da UFC (Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Paulo Albuquerque, professor da UFC

Em 1966, em pleno regime militar, José J. Veiga publicou romance em que os habitantes de uma cidade do interior tiveram suas vidas modificadas pela chegada de forasteiros com muitos recursos, ocupando uma grande área. Esses homens acostumados a mandar não tinham nome nem queriam intimidade com os locais; limitaram-se a montar acampamento afastado da cidade, mas perto o suficiente para causarem inquietação com suas obras e as suas movimentações indefinidas.

Curiosos, os moradores tentavam se aproximar, sem sucesso, até que figuras representativas da cidade foram sendo cooptadas para servir a essa ordem inquestionável. Seja por efeito do medo ou por conveniência pessoal, primeiro foi o dono da venda, depois o carroceiro faz-tudo, então o marceneiro, e por fim o casal de namorados apaixonados. Todos subjugados pelo poderes superiores dos desconhecidos,
tanto mais convincentes quanto menos se poderia falar deles.

Dobrada a auto-estima dos habitantes, agora convertidos a servos voluntários, chegam subitamente pragas nunca vistas: a cidade é tomada por cães em quantidade inimaginável, travando os espaços da vida comum. Algumas pessoas acham graça, outras se acostumam, um dia os cães vão embora. Sobrevém nova praga, esta ainda mais cruel: manadas infinitas de bois, impedindo qualquer movimento ou divergência, espalhando-se por todo o horizonte.

Isolados dias a fio em suas casas, já quase sem mantimentos e a ponto de morrer de fome, os moradores de Manarairema percebem então que nada podem fazer sozinhos. É a “Hora dos ruminantes”, título do livro que descreve a renúncia à autonomia, o ser engolido pelo medo de ter medo e o embrutecimento que vai nos tomando aos poucos, quando conferirmos poder aos que lucram com a destruição.

De 1966 a 2022 muita coisa pode ter mudado, mas a ficção continua a nos ensinar sobre a precária realidade.

 

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