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Cleto Brasileiro Pontes: Sonhar é preciso
Opinião

Cleto Brasileiro Pontes: Sonhar é preciso

Como psiquiatra, tento abranger o máximo conhecimento que posso. No caso, escolho enveredar pelo tortuoso caminho da antropologia, especificamente pelo viés dos sonhos que são uma espécie de picada feita na escuridão da noite
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Cleto Brasileiro Pontes, psiquiatra e escritor (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Cleto Brasileiro Pontes, psiquiatra e escritor

Fernando Pessoa dizia que navegar é preciso, porém, sem o sonho nem uma vela para esticar num junco bem primitivo com pouca capacidade de navegação seria possível. Sonhar dormindo, pois o resto é só realização. O sono noturno é um simples espaço temporal onde habita o sonho. Os sonhos são voos altos ou baixos que fazemos, pouco importa. Então, sonhar é preciso, sobretudo quando o ser humano passou a ser gente feia e desencantada.

As figuras rupestres espelham o que representamos. Ultimamente, coincidência ou não, a pandemia provocou o questionamento recorrente de que a saúde mental dos jovens vai de mal a pior, haja vista, o incremento no abuso de drogas, mortes violentas (suicídio, homicídios e "acidentes").

A estatística apenas notifica, mas as explicações podem vir por saberes diferentes, tais como a psicologia, a filosofia, religião, a antropologia e muito mais. Como psiquiatra, tento abranger o máximo conhecimento que posso. No caso, escolho enveredar pelo tortuoso caminho da antropologia, especificamente pelo viés dos sonhos que são uma espécie de picada feita na escuridão da noite.

Pois é, nos primórdios tínhamos medo do lobo mau. Galeno logo depois de Cristo criou esta entidade nosográfica, ou seja, medo do lobo mau, cunhado como Licantropia, conceito eminentemente grego (Lykos-loup-lobo e anthropos-homem). Na psicopatologia seria uma monomania na qual o doente se acredita transformado em lobo ou outro animal selvagem.

Faz muitos anos, quando não imaginávamos uma nova praga de pandemia, literalmente visitei a beleza milenar da Capadócia, circundada de cinco das sete Igrejas do Apocalipse. Recebi do guia turístico uma recomendação: vá dormir antes da meia-noite, porque depois aqui fica pilhado de lobos. Na minha mente de médico, pensei logo em Galeno que se utilizava de pergaminhos e não papiros egípcios para fazer os seus registros. Temos muito a aprender com o passado.

Com exceção dos gregos, costumamos dizer não balançando a cabeça da direita para a esquerda. Na Grécia, movimenta-se a cabeça de baixo pra cima e verbaliza ochi, ochi, sonoramente oxe-oxe. Na sua pureza, o cachorro simplesmente balança o rabo de um lado para outro e assim sempre fica alegre como tal. Coloca o rabo entre as pernas se fizer algo do desagrado de seu dono. O gato nos ensinou que ao enterrar as suas fezes não fica mal cheiro e assim passamos a enterrar o que poderia causar cheiro fétido.

Pelo viés da antropologia sempre tive o seguinte insight: os cachorros e os gatos foram os primeiros educadores do ser humano. Ambos vieram da Ásia, o primeiro há 12 mil anos aproximadamente e o segundo logo depois. Eles foram se alojar na casa daquele que se fez o seu dono. Então temos muito o que aprender sobre as culturas milenares, numa volta à ancestralidade para nos resignificarmos no presente e futuro.

A maior praga ou pandemia que está assolando a saúde dos nossos jovens é a sua impossibilidade de sonhar. O grande mestre de sonhos e sono, o professor Michel Juvet, em Lyon, na França, descobriu o fenômeno REM que ele apelidou de "sono paradoxal". Em inglês se transformou em movimento rápido dos olhos, há 70 anos. Há mais de quatro décadas, antes do celular, ele dizia que a criança tem de dormir no máximo às 22 horas, pois se não sonhar, a máquina (TV) sonha por ela. Quer queira, quer não, o declínio da nossa saúde mental se deve a um tipo de comunicação esquizofrênica (cisão do eu da realidade). Fake News dá mais gozo do que fatos, construída cronologicamente numa lógica mercadológica, não necessariamente humana. Vivemos uma passagem de era como assim aconteceu na era de industrilização ao corromper o capitalismo. Vamos pastorear os jovens como sugeriu uma colecionadora de frases a um pastor de ovelhas: elas demoram-se, precisam de ir dormir e sonhar com a manta quente das estrelas.

 

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