Acompanhei com muito interesse o debate sobre as comemorações do Pau da Bandeira, em Barbalha. Visitei a festa uma vez quando morei durante alguns meses no Cariri para acompanhar meu marido, que residia em Juazeiro do Norte. A lembrança que eu guardo é o esforço daquele monte de homem vestido com calções curtos, à época, carregando uma tora de árvore, o suor pingando e as brincadeiras na pipoca rolando solta. E, claro, a história de pegar no pau para casar fazia parte das risadas a céu aberto.
Passados todos esses anos, mais de 30, o mundo mudou radicalmente. Saímos do telefone fixo para a Inteligência Artificial. Em termos de comportamento, chamar uma mulher de "solteirona" não dá mais nem para imaginar. Ontem mesmo, li uma matéria sobre uma moça, Rosanna Ramos, de 36 anos, que criou, por inteligência artificial, um "homem perfeito", deu-lhe o nome de Eren Kartal, e casou-se com ele. Lembrei-me do livro da Marina Colasanti, "A moça tecelã", no qual a personagem decide fazer um marido de lã no tear. Os dois, no fim das contas, são ficção.
No último sábado, 3, Barbalha dançou na tradicional festa das "solteironas". No domingo, 4, o tronco do jatobá fez o percurso de sempre amparado pela homarada de costume. Vamos aqui devagarinho, porque o santo é de barro, como dizia minha mãe. Lendo no O POVO crônicas, artigos e notícias sobre o assunto, pensei no texto do sociólogo português, Fernando Catroga, "Nação, mito e rito: religião civil e comemoracionismo: EUA, França e Portugal", que reflete, entre outras coisas, sobre o poder que emana dos monumentos físicos, mas também simbólicos como é a Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio em Barbalha, hoje um patrimônio imaterial da cultura brasileira.
Reverenciada como "festa popular tradicional", Catroga nos lembra que, na verdade, quando determinado personagem ou rito se transforma em comemoração oficial, ele mudou de lugar carregado nos ombros do poder. No caso, a festa do Pau da Bandeira é sustentada pelo poder político, religioso e econômico. Todos com interesses muito legítimos. E não vamos nem falar do "tradicional". O sociólogo inglês Raymond Williams, no livro "Palavras Chave, um vocabulário de cultura e sociedade" afirma que o termo "no seu sentido moderno mais geral, é uma palavra particularmente difícil".
Portanto, dizer que a tradicional festa do Pau da Bandeira é machista não deveria ser uma ofensa. Isso é uma constatação. Afirmar que é possível trocar a árvore derrubada para a festa por outra a fim de preservar a espécie da flora da região não deveria ser visto como um atentado contra as tradições religiosas e culturais do Cariri e, sim, um chamado à discussão sobre o tema envolvendo, inclusive, os jovens.
A festa é tradicional, porém seus elementos podem ser, sim, pensados, discutidos e criticados diante da possibilidade das múltiplas leituras que um evento cultural proporciona. A cultura não pode ser considerada um dogma para atender a cabeças dogmáticas estejam elas na igreja, na política, ou na academia.
(*) No meu artigo da semana passada, eu errei o nome do escritor Itamar Vieira Júnior. Peço desculpas.