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Sobre a amizade entre mulheres
Opinião

Sobre a amizade entre mulheres

Além de agradar aos homens, fica claro desde muito cedo que precisamos estar — e pelo menos tentar ser — sempre melhor que outras mulheres. Afinal, são nossas "rivais", em quem "não se deve confiar", entre tantas outras bobagens que se escuta
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"...doida para te contar as novidades". Mal nos acomodamos à mesinha do café e enquanto folheávamos sem muito interesse o cardápio e ela escolhia uma água tônica com gengibre e eu fazia os olhos navegarem pelos cafés, mas só queria mesmo era o bolo de chocolate amargo, via no rosto dela a felicidade. Vai se casar?. "Quase isso amiga". Eu acho que foi daí, entre tantos assuntos, que chegamos à amizade entre as mulheres.

Minha amiga é bem mais jovem do que eu, mas isso nunca foi impedimento nenhum para que nossa amizade se estabelecesse há uns 20 anos e conversássemos sobre qualquer assunto, inclusive sobre a maternidade, coisa pela qual ela nunca alimentou nenhum interesse, pelo menos até agora. Concluímos sobre o quanto nós mulheres somos mal ensinadas sobre a amizade. Ensino velado, é certo, mas aprendido. Desde meninas a gente é incentivada a agradar aos homens, a começar pelo pai. O meu, por exemplo, não via com tanta frequência na infância, mas lembro-me da minha mãe me arrumar para esperá-lo.

Além de agradar aos homens, fica claro desde muito cedo que precisamos estar — e pelo menos tentar ser — sempre melhor que outras mulheres. Afinal, são nossas "rivais", em quem "não se deve confiar", entre tantas outras bobagens que se escuta. Enquanto isso, os homens desfilam sólidas amizades. Desde sempre. Até porque, mesmo meninos, sentem-se entre iguais. Um dos maiores tratados sobre amizade figuram no "O Banquete", de Platão, e se dá entre homens. Muitos filósofos falaram sobre a amizade, que reconheciam indispensável para a vida. No livro "Amizade, Filósofos", organizado por Massimo Baldini, estão vários desses pensadores, da antiguidade até Nietzsche. Tudo numa perspectiva masculina da coisa.

Foi minha amiga que falou sobre nossa amizade, lembrou o quanto confiamos uma na outra e o tanto que aprendemos juntas e enfrentamos situações complexas e rimos muito contando uma pra outra uns pequenos vexames que não revelaríamos numa roda com mais pessoas. Nessa tarde memorável, lembramos que a amizade ganha muito com o trabalho do tempo e se liberta de precisar falar todo dia e despachar zilhões de emojis e figurinhas e links e o diabo-a-quatro e conferir se a outra leu ou ficar chateada se não receber outro quinquilhão de multi besteiras digitais. Talvez o termo mais bonito que surgiu nesses tempos que nos impõem tantos desafios é o de sororidade, que diz respeito à empatia entre as mulheres.

Descobrimos juntas o quanto estamos abandonando também o hábito de agradar a todo mundo. Contei para minha amiga sobre a cicatriz do braço que eu guardava como um segredo e que decidi mostrá-la por compreender que essa marca, apesar de não ser bonita, faz parte da minha vida. Minha amiga acompanhou o acidente à época e lembrou-se dele. Depois, enumeramos alguns livros que falam sobre a amizade entre mulheres. O que eu li e que mais me tocou foi "Inseparáveis", de Simone de Beauvoir, que conta a história da amizade da filósofa ainda jovem com Elizabeth Lacoin.

Sempre recordo de duas frases que li nesse livro quando estou diante de várias das minhas amigas: "Eu não teria me tornado o que me tornei sem ela". A outra é fundamental: "Ela é muito melhor do que eu". n

 

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