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O que está em jogo no PL 1904 é a própria democracia brasileira
Opinião

O que está em jogo no PL 1904 é a própria democracia brasileira

O que o PL 1904 propõe é que meninas, que são 60% das vítimas de violência sexual no Brasil, sejam condenadas à maternidade compulsória ou à morte, já que a gestação na infância em si já é um risco à vida
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Ananda Marques, mestra em Ciência Política (UFPI) (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Ananda Marques, mestra em Ciência Política (UFPI)

A balança de poder entre o legislativo e o executivo encontrou uma nova trincheira na última semana, e desta vez, a batalha parece ainda mais difícil. O que está em jogo nas disputas em torno do PL 1904, de autoria de Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara a interrupção da gestação realizada após 22 semanas, ao homicídio, é a violação dos direitos humanos das meninas e mulheres vítimas de estupro, mas, também, o desenho institucional da democracia brasileira.

De Eduardo Cunha até agora, a presidência da Câmara tem buscado um protagonismo que desafia a institucionalidade do sistema político nacional. Arthur Lira tem atuado de forma autocrática na condução dos ritos da casa legislativa para não apenas pressionar, mas também chantagear o governo. Ao longo dos últimos 3 ciclos políticos, o presidencialismo de coalizão tem sofrido alterações significativas, do ponto de vista sistêmico, mas principalmente na questão orçamentária. O legislativo brasileiro hoje fatura perto de 30% do orçamento público. Para qualquer incumbente, é um fator de pressão constante.

O que o PL 1904 propõe é que meninas, que são 60% das vítimas de violência sexual no Brasil, sejam condenadas à maternidade compulsória ou à morte, já que a gestação na infância em si já é um risco à vida. Porém, o presidente da Câmara está usando o projeto de lei como moeda de troca para barganhar o apoio da bancada fundamentalista e chantagear o governo federal com vistas à eleição de seu sucessor para a presidência da casa em fevereiro de 2025 e de seu interesse em ser eleito senador em 2026. Além de garantir ao bolsonarismo material de campanha para as eleições municipais de outubro.

Lira votou a urgência, em apenas 24 segundos, estressando os limites do regimento, usando acordos de líderes para interesses escusos e demonstrando total desrespeito e pelas vítimas de estupro. Não houve discussão nas devidas comissões, nem debate público sobre o tema, tendo em vista que a previsão legal de interrupção da gestação faz parte do ordenamento jurídico brasileiro desde 1940.

É uma leitura ingênua supor que os dividendos políticos desta batalha se restringem aos direitos fundamentais das mulheres brasileiras. Há um protótipo de "Gilead" em curso, obviamente, mas os objetivos políticos estão para além da bancada religiosa, dizem respeito à erosão da democracia, atacada de dentro pra fora há tempo demais.

 

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