Por muitos anos, a saúde pública no Brasil e no mundo tem oscilado entre dois polos: a aceitação passiva das desigualdades que permeiam os sistemas de saúde ou a intervenção ativa em busca de transformação. Ao refletir sobre o legado de um grande pensador não consigo deixar de traçar um paralelo entre a sua visão de educação e os desafios que enfrentamos na gestão em saúde.
Paulo Freire falava que há uma diferença essencial entre adaptação ao mundo e inserção no mundo. A primeira nos conforma a aceitar as realidades tal como são. A segunda exige de nós uma consciência crítica, que se recusa a aceitar passivamente as condições existentes e nos impele à ação transformadora. No Brasil, o conceito de inserção crítica no mundo ganha ainda mais força quando pensamos no SUS.
Criado com o objetivo de universalizar o acesso à saúde, o SUS é uma expressão concreta da luta por equidade. Representa a inserção ativa na realidade social, o reconhecimento de que a saúde não pode ser um privilégio de poucos. Ainda assim, enfrenta ameaças constantes, seja pela mercantilização da saúde, que tenta transformar serviços públicos em fontes de lucro privado, seja pelo desfinanciamento e pelo sucateamento estrutural.
Aceitar as ameaças de braços cruzados seria concordar com a perpetuação da desigualdade. A inserção crítica implica não só em defender o SUS, mas em lutar por sua melhoria contínua. A gestão em saúde não pode ser neutra. E, nesse contexto, os gestores de saúde têm um papel central. Não podemos aceitar que a saúde seja tratada como uma mercadoria. Na minha trajetória como médico sanitarista e gestor, aprendi que sistemas de saúde não se transformam sozinhos. Eles são moldados pelas decisões que tomamos ou deixamos de tomar.
Aqui se faz o paralelo mais forte com a visão freireana: não podemos aceitar a realidade como ela é, sem perceber que cada ação nossa, cada decisão é uma oportunidade de intervenção. A gestão em saúde deve ser um ato de resistência e transformação, uma luta constante para garantir que o direito à saúde seja um direito de todos. Esse é o legado que escolho honrar.