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Juliana Monteiro: Caxemira entre a radicalização e o silêncio
Opinião

Juliana Monteiro: Caxemira entre a radicalização e o silêncio

A Caxemira não é apenas um ponto estratégico entre dois Estados inimigos. É uma comunidade viva, culturalmente rica e historicamente complexa, que foi reduzida a uma peça de xadrez entre Delhi e Islamabad
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Juliana Monteiro

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A Caxemira voltou ao noticiário revivendo capítulos antigos e mal resolvidos de um conflito geracional. Desde 1947, quando a antiga Índia Britânica foi repartida entre Índia, Paquistão e China, ocorrem disputas pelo controle do território - enquanto Nova Délhi reivindica a sua totalidade, Islamabad contesta apenas a porção indiana. Nesse tabuleiro geopolítico, a população local permanece refém de uma guerra que nunca foi sua, mas na qual hoje participa por motivos radicalmente distintos dos propagados pelas potências em confronto. As hostilidades, latentes há três décadas, explodiram com o atentado de 22 de abril em Pahalgam, mais detalhadamente discutidas na última edição desta coluna.

A subsequente escalada militar com o uso de drones, radares e caças ao longo da Linha de Controle (LoC), atingiu alvos militares e civis e superou a marca de cem mortos. O frágil cessar-fogo, acordado em 10 de maio sob pressão diplomática dos EUA, atende mais aos temores da comunidade internacional de um conflito nuclear do que às necessidades dos caxemires.

É um roteiro conhecido há décadas - violência, retaliação, cessar-fogo temporário - enquanto a população local arca, impotente, com o peso mais cruel do confronto. Hospitais, escolas, casas e mesquitas transformaram-se em alvos, com crianças e adolescentes entre as vítimas fatais ou gravemente feridas, enquanto as manchetes destacam a sofisticação tecnológica dos armamentos e analisa comparativamente os equipamentos chineses do Paquistão com sistemas franceses da Índia.

Quase nada se fala, ou melhor, se escuta, sobre quem habita, resiste e sofre as consequências do conflito mais letal do século na região, que produz toques de recolher que se estendem por dias a fio e uma geração inteira que nunca conheceu a Caxemira sem soldados nas ruas.

A Caxemira não é apenas um ponto estratégico entre dois Estados inimigos. É uma comunidade viva, culturalmente rica e historicamente complexa, que foi reduzida a uma peça de xadrez entre Delhi e Islamabad. A cada confronto, o discurso se repete: um lado se diz defensor, o outro alega combater o terror. Nenhum dos dois parece interessado em saber o que os caxemires realmente desejam.

Autonomia? Paz? Justiça? Essas vozes raramente encontram canal institucional. E talvez esse seja o maior fracasso de todos: transformar uma questão humana em apenas uma disputa territorial. Ao fazer isso, tanto Índia quanto Paquistão perpetuam a ideia de que a população local é apenas cenário - nunca agente.

Os organismos multilaterais, paralisados por vetos cruzados, limitam-se a pedir moderação às partes. E enquanto o mundo se ocupa com a diplomacia de crises, um povo vai sendo empurrado aos extremos, entre a radicalização e o silêncio forçado.

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