Cheguei cedo, como quem retorna a um lugar que já foi seu — mas sem saber se ainda fazia sentido voltar. Não havia pressa, nem entusiasmo. Uma expectativa baixa, quase indiferente — dessas que a gente usa para não se decepcionar. No ar, um cheiro antigo: suor, cerveja, fumaça e alguma coisa parecida com esperança.
Ao redor do Castelão, tudo já pulsava. Crianças nos ombros, como se herdassem algo maior que um time. Rostos pintados. Camisas preto e branco. Uma senhora beijando o escudo. Alguns rezavam. Outros gritavam como se o jogo já tivesse começado — ou como se o destino pudesse se deixar convencer pelo barulho. Vi tudo como quem tenta ficar de fora. Me escondi no ceticismo — e ainda assim fui alcançado.
O estádio não aceita distâncias. Aos poucos, o som atravessa o corpo. O tambor bate como coração fora do compasso. Os gritos não vêm da garganta — vêm do chão. "Ceará" era dito como quem encontra um nome para si. Como quem chama por casa. E, sem perceber, já era voz no coro.
As pessoas se levantam, respiram juntas, cantam sem combinar. De repente, já não estão apenas torcendo — estão sendo. Gritam não para convencer, mas para pertencer. E, nessa vibração compartilhada, algo se dissolve — e algo se acende.
Há momentos em que as hierarquias se apagam, e o que sobra é só gente — sem títulos, sem máscaras — reunida por algo que não se explica, mas se sente. Uma comunhão intensa, quase luminosa.
Victor Turner, velho antropólogo britânico, chamou isso de "communitas". Percebeu que, às vezes, certas experiências coletivas abrem uma fenda no mundo — e por ela escapa um estado raro: liminar, quase mágico. Por um instante, a ordem se desfaz. O que emerge é um calor que aproxima — um vínculo imediato, em que cada um se percebe no outro. Uma presença simples, vibrante, essencial. Como se, naquele intervalo, fosse possível lembrar que somos humanos porque há em nós um chamado antigo pela presença do outro.
Turner viu isso em rituais, em peregrinações. Mas talvez, se tivesse vivido um jogo do Ceará no Castelão, percebesse um eco de sua teoria. Porque ali, mesmo que por instantes, não há hierarquia que resista: classe, credo, profissão — tudo se dissolve no coro. É comunhão real, embora breve. Um instante em que nos tornamos um só — e esquecemos, com sorte, que o mundo lá fora continua o mesmo. Talvez por isso funcione tão bem.
No fim, é só gente cantando junto, sem saber exatamente por quê. E, às vezes, isso basta. Ali, por um instante, tudo faz sentido. Mesmo — ou talvez principalmente — o que nunca fez.
Turner nunca viu o Castelão.
Mas se tivesse... talvez nem abrisse o caderno de campo. Talvez só ficasse ali, de pé.
Com os outros. Cantando:
“Eu sou Ceará!...”