Quinta-feira última, fui assistir ao ensaio geral da peça “Cavucar” que põe em cena a vida e o martírio da beata Maria de Araújo, morta em 1914, e que se tornou protagonista de um dos maiores embates entre um milagre e o poder religioso. Na ocasião, a atriz Monique Cardoso fez a leitura do texto dramatúrgico da escritora Tércia Montenegro. Naquela mistura de ficção e fatos reais, talvez tenha sido a primeira vez que mais tenha me emocionado com a história da beata.
Na peça, que estreia em Fortaleza no final de agosto, uma pesquisadora aceita um trabalho protocolar no Vaticano de cuidar do acervo secreto da instituição. Por acaso, a personagem encontra numa caixa, entre centenas de outras, restos mortais da beata, que se resumem a pequenos ossos de uma das mãos. A partir daí, o expectador entra no mundo real de Maria de Araújo, cujo poder religioso tentou apagar de vez da memória.
Quando o milagre da hóstia transformada em sangue tomou conta do cenário da fé de Juazeiro do Norte, a história reverberou e deu início ao martírio da beata. Examinada, julgada, castigada, e depois, confinada, foi-lhe imposto um silêncio perpétuo pelos líderes religiosos da época. Alguns anos pós sua morte, o túmulo da beata foi violado e o corpo desapareceu. Depois disso, o próprio lugar foi destruído.
Agora, “suponhamos” que a hóstia tivesse se transformado em sangue na boca de uma mulher europeia... Enquanto você pensa, o Cariri é hoje o palco com destaque no Estado para os casos de violência contra as mulheres. Então, “suponhamos” que, não por acaso, historicamente, é a região que mais produz santas populares vítimas de violência: Benigna (Santana do Cariri), Maria de Bil (Várzea Alegre), Mártir Francisca (Aurora).
Continuando, e “se” fizéssemos o exercício de pensar que algumas tradições populares religiosas e culturais funcionam como um véu que se deseja sagrado sobre a violência tão enraizada nos costumes de subjugar as mulheres até à morte? Enquanto a voz de Monique ecoava, pensei e continuo pensando em como perpetuamos num processo histórico práticas que se transfiguram em devoção, que são esquecidas nos vãos da consciência social, que se amalgamam ao turístico-econômico tão ao modo neoliberal da indústria do entretenimento que apenas atordoa e chancela os esquecimentos.
Ao ler o relatório “Elas Vivem: Um caminho de luta”, da Rede Observatório de Segurança (2025), desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e verificar com tristeza o crescimento epidêmico de mortes e estupros de mulheres em todo o País, e particularmente no Ceará, percebo o quanto é fácil esquecer as mulheres que morrem em situações tão trágicas e que rapidamente se transformam em números, desnomeadas, sem rostos e, em algumas poucas vezes, iluminadas pela luz de velas.