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Juliana Monteiro: Memória, reconhecimento e justiça
Opinião

Juliana Monteiro: Memória, reconhecimento e justiça

.Memória, sem justiça, é performance. Como alertam as Mães de Srebrenica "Criminosos impunes engolem o mundo em ódio. Assassinos não podem ser heróis"
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Juliana Monteiro (Foto: arquivo pessoal)
Foto: arquivo pessoal Juliana Monteiro

"Quem se lembra dos armênios?", frase atribuída a Hitler às vésperas da invasão da Polônia, intitula o poema do palestino Najwan Darwish. Na Palestina, como na Armênia, a pergunta evoca o ciclo perverso de esquecimento e repetição que dá origem às grandes tragédias humanitárias. E quem se lembra dos bósnios? Quem se lembra de 11 de julho de 1995, quando o general sérvio Ratko Mladi, sob os olhos das tropas da ONU, invadiu Srebrenica e executou cerca de 8 mil homens e meninos bósnios muçulmanos? Graças à resolução adotada em 2024 pela Assembleia Geral da ONU, a data foi oficialmente designada como o Dia da Memória do Genocídio de Srebrenica — o último genocídio formalmente reconhecido pela organização. Antes dele, veio Ruanda (1994), no qual extremistas hutus massacraram até 1 milhão de tutsis em cem dias.

A trajetória do conceito revela sua complexidade e aplicação contraditória. O jurista judeu-polonês Raphael Lemkin cunhou o termo ao observar o extermínio armênio pelo Império Otomano (1915); mais tarde, o Holocausto o motivou a lutar para que “genocídio” fosse tipificado como crime pelo direito internacional. Apesar de ambas as inspirações, somente o último caso é formal, jurídica, institucional e simbolicamente reconhecido como genocídio pela ONU e tido como evento fundador do conceito jurídico de 1948.

O reconhecimento, portanto, é vacilante. Apesar das similaridades e dos critérios objetivos, está circunscrito em uma dimensão política — forças estatais e não-estatais participam de sua formalização. Desde Srebrenica, genocídios são juridicamente definidos com base em critérios qualitativos que vão além de "massacres em massa" ou "limpeza étnica", não mais exigindo a eliminação de um grupo inteiro, mas de uma "parte substancial", o que sugere a aplicação do conceito mesmo quando apenas uma pequena parte do grupo é afetada.

Além disso, desde 2001, a “responsabilidade de proteger” impede que os países se escorem no argumento da soberania para promover ou permitir atrocidades em seu território. Esses avanços deveriam ser um marco,mas expõem a persistência dos padrões antigos: fracasso e omissão da comunidade internacional, disputas semânticas que retardam o reconhecimento das violações, seletividade geopolítica da aplicação do direito internacional e hierarquização do sofrimento.

O conflito em Gaza ilustra isso. Segundo a ONU, a Anistia Internacional e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Israel comete crimes de guerra, bloqueio ilegal e destruição de infraestrutura civil, gerando uma crise humanitária sem precedentes e danos colaterais excessivos. Quem se lembra dos palestinos? Memória, sem justiça, é performance. Como alertam as Mães de Srebrenica “Criminosos impunes engolem o mundo em ódio. Assassinos não podem ser heróis”.

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