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Emmanuel Furtado Filho: O princípio da incerteza
Opinião

Emmanuel Furtado Filho: O princípio da incerteza

A postura das democracias europeias diante de Gaza é reveladora: embora busquem afirmar autonomia estratégica, recuam diante do custo político de contrariar Washington. Um silêncio que flerta com a cumplicidade
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Emmanuel Furtado Filho. Chefe do Departamento de Direito Público da UFC e doutor em Direito pela Universidade de Paris. (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Emmanuel Furtado Filho. Chefe do Departamento de Direito Público da UFC e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

Dizem que o século XXI começou com o 11 de Setembro. Talvez. Mas, para o Oriente Médio, ele nunca deixou de ser o século XX: feridas abertas, fronteiras traçadas por impérios extintos e uma arquitetura geopolítica herdada da dominação colonial, onde cada linha carrega a memória de uma imposição. Há uma história que insiste em não passar -- e um presente que se ergue sobre sua repetição estratégica. O confronto entre Irã e Israel - agora com a entrada direta dos EUA - escapa às explicações convencionais de geopolítica. Gaza oferece o cenário mais visível -- mas está longe de ser o único.

O embate se desenrola por vias indiretas, sustentado por alianças e mensagens cifradas. No centro de todas, o cálculo nuclear. Israel jamais reconheceu oficialmente seu arsenal - e, por não integrar o Tratado de Não Proliferação Nuclear, extrai da negação parte de sua força. O Irã, embora signatário do TNP, desafia seus limites: nega desejar a bomba, mas avança até o limiar da suspeita, cultivando uma ambiguidade que vale tanto quanto a posse.

Entre o não dito e o temido, constrói-se o prestígio das potências. O átomo não precisa ser detonado para projetar poder. Na mecânica quântica, pelo princípio da incerteza, formulado pelo físico Heisenberg, o simples ato de observar altera o estado da partícula. O mesmo se aplica à política nuclear. Um programa, mesmo inacabado, já desloca o equilíbrio. Israel e Irã operam no campo do quase.

A dissuasão vira linguagem; o átomo, sintaxe do poder. Ressurge, nesse cenário, o espectro da corrida nuclear. Quando o respeito se mede pela intimidação, e a segurança pela posse de ogivas, a proliferação torna-se tentação -- ou necessidade. É nesse ambiente, onde o direito cede lugar ao temor, que a ordem internacional revela suas rachaduras. A guerra é apenas o sintoma visível de uma erosão mais profunda.

Nesse contexto, a postura das democracias europeias diante de Gaza é reveladora: embora busquem afirmar autonomia estratégica, recuam diante do custo político de contrariar Washington. Um silêncio que flerta com a cumplicidade. E, ao hesitarem em aplicar os próprios princípios, essas potências revelam sua incoerência e aceleram o distanciamento entre o Ocidente e a maioria global, que observa, denuncia - e se afasta.

Evitar o ponto de não retorno exige um resgate, ainda que imperfeito, da ideia de limite partilhado, e a sabedoria e responsabilidade histórica de reconhecê-lo enquanto ainda há tempo. A nova corrida nuclear já se insinua, como realidade em movimento. Repeti-la, neste século que acreditava ter enterrado as ruínas do anterior, equivale a renunciar à inteligência, trair a memória e ferir, mais uma vez, a própria ideia de humanidade.

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