Logo O POVO+
Marnylton Cabral: Quero cantar mais uma vez
Opinião

Marnylton Cabral: Quero cantar mais uma vez

.Como manter uma história viva? Mantendo o contador respirando? Não, este um dia cessa a respiração. Precisamos manter o povo respirando. Cada boca de cada espaço de uma comunidade precisa se manter viva para continuar contando
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Foto do Articulista

Marnylton Cabral

Analista de Gestão no Instituto Juventude Inovação. Graduado em Letras para Universidade Federal do Ceará (UFC).

Lembro de ouvir as histórias de minha mãe na soleira da cozinha enquanto ela passava um café. Lembro de querer guardar aquelas palavras para que nunca as esquecesse. Não pensava em contá-las até que me vi escritor. Desde que me vi pesquisando literatura indígena, tenho me perguntado sobre a força da oralidade em fricção com a concretude da escrita. Como mantenho uma história viva?

Quando penso na potência da oralidade dos povos originários, percebo que está atrelada à sua existência, e esta, à existência do mundo. O medo da perda da oralidade surge quando sabemos que um povo perecerá; há a urgência de registrar, passar para o papel, para o arquivo, ou para onde for possível.

O primeiro encontro que tive com este medo foi ao assistir ao filme Piripkura, no qual restam somente dois sobreviventes do povo homônimo no interior do Mato Grosso e, ao prever a morte dos dois, você pressupõe que todas as histórias e conhecimentos deitarão junto na terra. Quando assisto às Hiper Mulheres, a frase da anciã "quero cantar mais uma vez" me toma numa sensação de deslocamento, porque logo em seguida ela ensina à neta todas as canções de seu povo. O ato de passar adiante uma história lhe permite mantê-la viva dentro das bocas, das mentes, do coração e do espírito dos demais de uma comunidade.

Como mantemos uma história viva? Mantendo o contador respirando? Não, este um dia cessa a respiração. Precisamos manter o povo respirando. Cada boca de cada espaço de uma comunidade precisa se manter viva para continuar contando.

Se pudesse capturar as memórias em cenas, teríamos algo muito semelhante ao Hiper Mulheres, cuja literatura se expande e ganha outras formas de se manter viva. Minha mãe, uma mulher analfabeta de escrita, mas pós-doutoranda de coração e gentileza jamais teria oportunidade de ler Ariano Suassuna, mas ama de paixão a adaptação cinematográfica de O Auto da Compadecida.

A memória é a mais poderosa dentro de nós, ela fica viva no corpo, na fala, no olhar. O olhar transborda memória. Digo isso com tamanha convicção porque, ao assistir com olhos marejados à anciã repassando para a neta seus cantos, deitada em uma rede, e a neta, em um banquinho, lembro da soleira de casa, dos pães doces e do café passado e lembro ainda mais dos olhos de minha mãe, que transbordavam memórias. Ali nada estava escrito, poderia estar, mas não era este o efeito. Eu posso recontar tudo o que minha mãe dizia naqueles fins de tarde, mas jamais vocês sentiram o sabor do café, as mãos dela e o olhar transbordando memória. Temos a necessidade de contar para existir.

O que você achou desse conteúdo?