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Morango do Amor e Fome de Justiça
Opinião

Morango do Amor e Fome de Justiça

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Leopoldo Martins Filho. Advogado. Membro Efetivo da Comissão Eleitoral da OAB/CE. Membro Consultivo da Comissão Especial Eleitoral da OAB/NACIONAL. (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Leopoldo Martins Filho. Advogado. Membro Efetivo da Comissão Eleitoral da OAB/CE. Membro Consultivo da Comissão Especial Eleitoral da OAB/NACIONAL.

Nas redes sociais, a nova febre atende pelo nome de “morango do amor”. Um simples morango espetado no palito, banhado em leite condensado, coberto com brigadeiro, enfeitado com granulados coloridos e, como toque final, uma calda de chocolate escorrendo sensualmente. Uma sobremesa que, sozinha, vale uma parcela do cartão. Tudo isso, claro, registrado com filtro, ring light e trilha sonora da moda para brilhar em um reels de 15 segundos, que em teoria, deveria adoçar o dia de quem assiste. Em teoria.

Enquanto isso, o mundo real passa fome — literalmente. Do outro lado do planeta — fora da bolha de cobertura crocante do nosso privilégio —, em Gaza, a realidade é tão amarga que o estômago se revira. Lá, onde não se vive de likes nem de cobertura de chocolate, o prato do dia é escassez e miséria. Não há brigadeiro, nem Nutella. Há apenas escassez. Ali, a única calda que escorre não é doce — é lágrima, é suor, é sangue. Crianças esqueléticas disputam migalhas, mães tentam cozinhar com o que não têm e famílias inteiras sobrevivem entre ruínas, bloqueios e bombardeios. Não há doce, não há filtros. Só o amargo da fome, essa que, para nós, é só um meme antes do almoço; ali tem nome, cheiro, dor — e mata.

E tudo isso, pasmem, divide espaço no mesmo feed. Rolamos a tela: um vídeo ensinando a fazer morango do amor com glitter comestível, outro com crianças em Gaza pedindo pão. Uma dancinha alegre, um grito desesperado por socorro. E seguimos. O algoritmo nos serve a sobremesa da alienação com a mesma eficiência com que o mundo serve o abandono àquelas populações.

O mais chocante é que tudo isso convive no mesmo feed. Rolamos entre um vídeo de morango e outro de uma criança desnutrida. Entre uma dancinha e um apelo por socorro. A contradição dói. Enquanto muitos escolhem entre Nutella ou chocolate branco, outros não têm sequer um punhado de farinha. Enquanto se mede qual doce gera mais engajamento, vidas se apagam silenciosamente — sem view, sem trend, sem emoji de coração. Vivemos um tempo em que a empatia precisa disputar atenção com receitas açucaradas e desafios patéticos.

E aqui está o paradoxo: enquanto a internet nos oferece morangos empalhados com amor, o mundo real esfrega nos olhos a fome empalhada com descaso. Influenciadores medem qual cobertura rende mais views; populações inteiras lutam por um prato raso de arroz. Não é pecado comer um doce, claro que não. Mas talvez seja indigesto fazê-lo com os olhos fechados para o amargo do outro.

Há algo de profundamente simbólico nesse contraste entre a estética do excesso e a realidade da escassez. De um lado, uma sociedade que romantiza a doçura como expressão de status. Do outro, um povo que implora por justiça humanitária. A diferença entre o “morango do amor” e o pão da sobrevivência está na mesma balança que pesa o que priorizamos: o espetáculo ou a empatia?

Talvez o verdadeiro doce da moda devesse ser outro — a compaixão. Aquela que não viraliza, que não vem com granulado, que não rende likes, mas que sacia uma fome bem mais urgente: a fome de humanidade.

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