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André Gonçalves: Hiperestética, a disputa pelo sensível e o mundo programado
Opinião

André Gonçalves: Hiperestética, a disputa pelo sensível e o mundo programado

O que historicamente se entendeu como experiência estética – algo excepcional, por vezes arrebatador, que interrompe a rotina – passa a ser mediado, induzido e moldado por plataformas, sob lógicas algorítmico-econômicas
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André Gonçalves

Pesquisador em Filosofia da Tecnologia, doutorando em Filosofia (Ufpi) e Mestre em Comunicação

Vivemos em contato contínuo com tecnologias que moldam o mundo – e a nós mesmos –, submetidos a um aparato técnico sem precedentes que atravessa todas as instâncias da vida.

Andrew Feenberg chama esse ambiente de tecnossistema: um sistema integrado que organiza o poder e a racionalidade nas ciências, na educação, na política, no entretenimento, na saúde, nos transportes e nas formas mais triviais do cotidiano. Em qualquer canto do planeta dependemos desse sistema técnico onipresente, ou sofremos seus efeitos.

Uma das consequências mais profundas é a transformação de como percebemos o mundo, ou seja, como o vemos, escutamos e sentimos, com nossa sensibilidade reorganizada e programada por métricas. O que historicamente se entendeu como experiência estética – algo excepcional, por vezes arrebatador, que interrompe a rotina – passa a ser mediado, induzido e moldado por plataformas, sob lógicas algorítmico-econômicas. Essa configuração constitui um novo regime do sensível: o modo como o mundo nos toca por meio dos estímulos.

A isso tenho chamado de hiperestética, regime em que o sentir é continuamente formatado por dispositivos técnicos. Há, aqui, um colapso perceptivo: deixamos de perceber o mundo como alteridade e o vemos apenas como conteúdo, atravessado por arquiteturas digitais que intensificam estímulos e transformam a percepção em mercadoria.

Esse novo regime do sensível nos exige mais que adaptação: exige consciência crítica. O desafio é tornar visíveis os filtros e suas infraestruturas invisíveis. Desacelerar, questionar o fluxo de estímulos guiados por interesses que não são os nossos e recuperarmos a capacidade de sentir, com liberdade e atenção não capturada.

Devemos politizar a técnica, já que se trata de uma disputa pelo sensível e, dela, depende não só o que sentimos, mas como existimos. Caso contrário, seguiremos prisioneiros da sensibilidade automatizada, que impede de imaginar o que ainda poderemos ser.

Talvez devamos, mesmo, reinventar a ética do perceber. O quanto antes.

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