Em A Peste, Albert Camus nos lembra que o ser humano não é totalmente impotente diante da sorte que lhe é imposta. Mesmo diante da catástrofe, sempre resta a possibilidade de agir, de resistir, de afirmar a dignidade contra a arbitrariedade do absurdo. Por outro lado, em O Mito de Sísifo, o ensaista argelino afirma que "sempre houve homens para defender os direitos do irracional". Trata-se de um alerta: o irracional não desaparece; ele espreita, ganha corpo e busca corroer as bases da vida coletiva.
No Brasil atual, a extrema direita mobiliza esse irracional em ações e estratagemas que tentam fazer a razão tropeçar, como se vê em sua tosca luta pela anistia aos criminosos do 8 de janeiro, o que faz lembrar outra observação de Camus, esta de O Homem Revoltado: "no dia que o crime se enfeitar com os despojos da inocência, por uma curiosa reviravolta do nosso tempo, a inocência é que será intimada a fornecer suas justificativas".
Diante disso, há dois caminhos possíveis: o da reclamação acomodada e o do agir. Acomodar-se seria deixar que a história se incline à irracionalidade, como se a democracia fosse apenas um detalhe descartável. Agir, ao contrário, é reconhecer que a razão não é um luxo de intelectuais, mas o esteio que sustenta a vida democrática.
É pela razão que podemos e devemos falar, pensar, escrever, pintar, cantar, dançar, empreender ações, enfim, para resistir às deturpadas noções de liberdade e justiça dos bolsonaristas, que as tomam como instrumentos de satisfação do desejo e do interesse pessoal.
Camus nos ensina que não escolhemos o mundo em que nascemos, mas escolhemos a atitude diante dele. A aposta na razão é, portanto, uma escolha ética e política: ela nos protege do fanatismo e dá sentido à luta comum. Num tempo em que forças obscurantistas buscam legitimar a mentira e normalizar o ódio, reafirmar a razão significa preservar a possibilidade de convivência democrática.
Resistir é nosso dever, porque é pela razão que a verdadeira liberdade (solidária e consequente) encontra terreno para florescer e justiça pode cumprir seu princípio mais elementar: dar a cada um o que lhe é devido.