Logo O POVO+
Sidney Ferreira Leite: Brasil, democracia e o mal-entendido
Opinião

Sidney Ferreira Leite: Brasil, democracia e o mal-entendido

Se a autoridade garante a coesão legítima do espaço público, o autoritarismo o destrói, reduzindo a política a instrumento de manipulação e dominação. O resultado é o esvaziamento da democracia e o desaparecimento do próprio espaço público
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Sidney Ferreira Leite. Doutor em Relações Internacionais (USP). (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Sidney Ferreira Leite. Doutor em Relações Internacionais (USP).

"A democracia no Brasil é um grande mal-entendido." A frase de Sérgio Buarque de Holanda ecoa como diagnóstico do momento que o país atravessa e ilumina a crise democrática contemporânea, sobretudo quando observada à luz de dois conceitos centrais: autoridade e autoritarismo.

Para refletir sobre eles, tomo como referência Hannah Arendt, relevante pensadora do campo da política, da liberdade e das formas de governo. Em obras como Entre o Passado e o Futuro e Origens do Totalitarismo, Arendt oferece análises sobre a natureza da democracia e os riscos que a ameaçam.

A democracia não deve ser reduzida a procedimentos eleitorais ou à mera administração de interesses privados. Trata-se de um espaço público de ação e palavra, em que o poder nasce da força dos argumentos, e não da violência das armas ou do arbítrio. Nela, os indivíduos se reconhecem como sujeitos livres e plurais, capazes de agir em conjunto e deliberar sobre o destino comum. A política, assim, realiza-se na convivência e na participação ativa.

Nesse contexto, a autoridade cumpre papel essencial. Diferentemente da coerção, funda-se na legitimidade reconhecida pelo corpo de cidadãos. Não anula a liberdade, mas cria condições para que a pluralidade se mantenha e para que o debate público se realize sobre bases estáveis.

O autoritarismo, ao contrário, é a corrosão desse princípio. Manifesta-se quando o poder busca impor-se pela eliminação da crítica, pelo silenciamento das diferenças e pela transformação dos cidadãos em sujeitos passivos - como ocorreu nos regimes nazista e stalinista.

Se a autoridade garante a coesão legítima do espaço público, o autoritarismo o destrói, reduzindo a política a instrumento de manipulação e dominação. O resultado é o esvaziamento da democracia e, em última instância, o desaparecimento do próprio espaço público.

O Brasil vive um tempo em que esse espaço, que deveria ser lugar de pluralidade, reduz-se a bolhas ideológicas e a debates rasos, prisioneiros de concepções unidimensionais. Autoridades, em vez de praticarem o respeito à Constituição, agem como Simão Bacamarte, de O Alienista, de Machado de Assis: convencidas de sua razão absoluta, ameaçam confinar a sociedade em delírios narcísicos.

A diferença é que a essas autoridades falta a honestidade do personagem machadiano, que reconhece ser ele o verdadeiro louco, liberta os cidadãos e decide internar-se no hospício. Sob o pretexto de defender a democracia, multiplicam-se rompantes autoritários.

O resultado é a redução do debate público ao personalismo e ao egocentrismo. A frase de Sérgio Buarque ressurge, atual e dolorosa: a democracia no Brasil continua a ser um grande mal-entendido.

 

O que você achou desse conteúdo?