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Stefany Almeida: O debate que parece encenado
Opinião

Stefany Almeida: O debate que parece encenado

Normalizar jornadas de 12, 14 horas como algo nobre é perpetuar a cultura do desgaste, do adoecimento e da perda de vida fora do trabalho. É vender a ilusão de que sacrificar saúde, família, relacionamentos e privacidade é o único caminho para o sucesso
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Stefany Almeida

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Nessas últimas semanas, acompanhei o burburinho na internet após o lançamento do vídeo "1 patrão vs 30 demitidos", conduzido por Tallis Gomes, fundador da G4 Educação, empresa que vende cursos e programas de desenvolvimento para empreendedores. A maioria dos comentários elogiava a postura do empresário e criticava os participantes, o que, confesso, despertou ainda mais a minha curiosidade para assistir.

Os participantes selecionados para o debate parecem ter sido escolhidos a dedo: pessoas com histórico de frustração profissional, mal remuneradas e com experiências negativas com as suas lideranças. Isso já coloca a discussão em um viés previsível, quase roteirizado. Assistindo, a sensação é de que as falas foram moldadas para permitir que Tallis brilhasse com um discurso polido e estrategicamente construído.

Ao longo do vídeo, ele se apoia na velha bandeira da meritocracia, usando como exemplo sua própria trajetória: "Batia o ponto no horário e voltava escondido para a sala, trabalhando até 23h ou 00h sem precisar". O que ele chama de "dedicação" nada mais é do que a romantização do excesso de trabalho.

Normalizar jornadas de 12, 14 horas como algo nobre é perpetuar a cultura do desgaste, do adoecimento e da perda de vida fora do trabalho. É vender a ilusão de que sacrificar saúde, família, relacionamentos e privacidade é o único caminho para o sucesso. E insistir nesse discurso é fechar os olhos para um mundo que já entendeu que produtividade não se mede em horas de exaustão.

Vale lembrar que, em 2024, Tallis já havia se envolvido em algumas polêmicas, entre elas, declarações como "não contrato esquerdistas" e "Deus me livre de uma mulher CEO". No próprio vídeo, ele afirma que as gerações mais novas não possuem resiliência, são imaturas e que não contrata "gente woke"(termo que se refere a uma consciência sobre questões de justiça social e racial, especialmente em relação a preconceito e discriminação.)

Ao analisar o perfil da G4 no Glassdoor, um comentário me chamou a atenção: "O RH está lá apenas para contratar e demitir". Essa percepção faz sentido se considerarmos que a empresa era liderada por um CEO com convicções tão inflexíveis como as mencionadas. Afinal, o setor de Recursos Humanos tem como papel primordial alinhar os interesses do negócio à experiência dos colaboradores. Quando essa conexão não existe, o RH perde sua função estratégica e se limita a um papel puramente burocrático.

Ao fim do vídeo, percebi que não discordo totalmente de todas as falas, mas algumas de suas colocações merecem reflexão. O trabalho precisa, e deve ser um espaço de realização, conquistas e crescimento, não um ambiente que adoece e desgasta. Disfarçar exploração de "oportunidade" e exaustão de "dedicação" é perpetuar uma cultura que já deveria ter ficado no passado.

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