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A flotilha da liberdade e o Ceará
Opinião

A flotilha da liberdade e o Ceará

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Tipo Notícia Por
Maximiliano Ponte
Médico-psiquiatra, pesquisador da Fiocruz, membro do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS.
 (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Maximiliano Ponte Médico-psiquiatra, pesquisador da Fiocruz, membro do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS.

Sendo judeu e cearense, reconheço a importância de iniciativas que chamem atenção do mundo para populações sitiadas e privadas de direitos mais básicos. É justo que a opinião pública internacional se mobilize diante de gente que vive sob o jugo do medo, exposta à violência arbitrária de forças armadas que se impõem como donas da vida e da morte. A ideia de uma flotilha navegando mares para denunciar injustiças é inquestionavelmente nobre.

São histórias de convivência com o terror. Famílias obrigadas a abandonar suas casas. Crianças crescendo sem poder brincar. Comunidades inteiras vivendo reféns de um poder que não reconhece limites éticos. Escolas fechadas de forma abrupta. Ruas bloqueadas por barricadas. Veículos incendiados diante de todos. Toques de recolher que transformam a rotina em cárcere.

Poderia ser a Faixa de Gaza sob os olhos do mundo. Mas é Fortaleza. É o Ceará. Aqui famílias também são arrancadas de suas casas, escolas se fecham de repente, e a rotina se converte em prisão pelo medo. Não é guerra declarada, mas é uma vida sitiada pelas facções criminosas.

Se uma flotilha atravessa oceanos para denunciar o sofrimento humano, por que não aportar também no Porto do Mucuripe? Se pode atracar em Barcelona, por que não em Fortaleza, cidade ensolarada e vibrante. Aqui, os barcos da solidariedade encontrariam famílias desalojadas, comunidades acuadas e cidades inteiras paralisadas pela lógica da violência.

E a flotilha poderia contar até com uma guia local, que está a bordo. Conhece muito bem Fortaleza e o Ceará. Poderia começar apresentando a cidade pela sua boêmia, pelos centros de lazer... Entre um passeio e outro, mostraria também os muros pichados com siglas de organizações criminosas, os avisos de “baixar o vidro do carro” ou “tirar o capacete”, e até as ordens de expulsão de famílias, rabiscadas em paredes como sentença de desterro.

Seria uma excursão não apenas pelas belezas tropicais, mas também pela dura realidade de uma cidade que vive sitiada. É fácil navegar contra Israel e posar de herói internacional. Difícil é reconhecer que aqui, em Fortaleza, e no Ceará, o terror se impõe sobre a população mais vulnerável. Se a indignação fosse coerente, a Flotilha da Liberdade teria escala obrigatória no Mucuripe!

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