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Sidney Ferreira Leite: O Governo Trump e a Utopia Reversa
Opinião

Sidney Ferreira Leite: O Governo Trump e a Utopia Reversa

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Sidney Ferreira Leite. Doutor em Relações Internacionais (USP). (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Sidney Ferreira Leite. Doutor em Relações Internacionais (USP).

O governo de Donald Trump tem provocado um verdadeiro terremoto nas relações internacionais. Sua política tarifária agressiva, declarações polêmicas e ações intempestivas revelam uma base ideológica que vai além do pragmatismo: a utopia reversa.

O conceito de utopia surgiu na obra Utopia, de Thomas More, como representação idealizada de uma sociedade perfeita, orientando projetos transformadores. No campo político, a utopia projeta o futuro, questiona estruturas e inspira mudanças. Já a utopia reversa inverte essa lógica: em vez de projetar o futuro, busca inspiração no passado, em uma suposta "época de ouro".

A política externa de Trump se ancora nessa visão nostálgica, reinterpretando valores históricos, como república, democracia e liberdade, associados ao Destino Manifesto - ideologia que justificava a expansão dos Estados Unidos sob a crença de uma missão moral de levar seus valores ao mundo. Essa base histórica se apoia em dois momentos-chave: (1) o contexto da Independência e (2) o início do século XX, quando o país se consolidou como potência.

Após 1776, os Estados Unidos eram uma jovem nação. Sua política externa era isolacionista, orientada pelo conselho de George Washington, que alertava para os riscos de alianças permanentes e envolvimentos em conflitos europeus. O objetivo era proteger a República em formação. Nesse cenário, a Doutrina Monroe (1823) consolidou a ideia de que a América deveria estar livre da intervenção europeia, sintetizada no lema "América para os americanos".

Esse panorama mudou no final do século XIX, quando os EUA, impulsionados pela Segunda Revolução Industrial, passaram a buscar novos mercados e matérias-primas. O país adotou uma política intervencionista e expansionista, abandonando gradualmente o isolacionismo. Sob os governos de William McKinley e Theodore Roosevelt, a nova postura se consolidou. Roosevelt, em especial, simbolizou a mudança com a "política do Big Stick": "Fale suavemente e carregue um grande porrete".

A transição consolidou os EUA como potência mundial e moldou uma identidade nacional voltada à liderança global. Trump resgata símbolos históricos em um contexto profundamente diferente, marcado por cadeias produtivas globais e pela ascensão da China como potência econômica. Sua utopia reversa expressa a crença na independência econômica, na reindustrialização e na restauração do protagonismo norte-americano com base em referências do passado.

A questão é se, em um mundo interdependente e multipolar, a utopia reversa tem força para reconfigurar o sistema internacional, segundo os interesses dos Estados Unidos - e, assim, realmente "fazer a América grande novamente".

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