 
            A megaoperação policial no Rio de Janeiro, que resultou em mais de 100 mortos, não pode ser vista apenas como mais uma intervenção policial. Ela segue uma lógica necropolítica, transformando a morte em instrumento político em um espetáculo mórbido de corpos enfileirados, de desespero e de insegurança.
Oficialmente, apenas os policiais são contabilizados como vítimas, o que evidencia o desequilíbrio na percepção de perdas e invisibiliza os impactos sobre as comunidades, reduzindo o espaço para debates sobre outras formas de segurança e controle do crime.
Ignoram-se ações de proteção que poderiam reduzir danos - inclusive mortes de policiais - e fortalecer a população contra extorsões e ilegalismos. A preocupação com os dias seguintes à operação é inevitável: a quem caberá o controle desses territórios - o retorno da mesma facção, o avanço de outras ou o fortalecimento das milícias?
A operação cumpre também uma função política de afirmar autoridade do governo estadual e criar tensão em relação ao governo federal. Há um paradoxo evidente: o estado do Rio de Janeiro tende a rotular facções como "narcoterroristas" quase para se proteger de ser percebido como um "narcoestado", diante da falência histórica em lidar com a relação entre crime e poder estatal e para evitar que o problema seja tratado como questão de interferência federal.
Ao mesmo tempo, a ação reforça uma lógica de descontrole e imprevisibilidade. A letalidade da operação pode recrudescer a resposta das facções, intensificar disputas territoriais e ampliar o recrutamento diante do sentimento de revanche, alimentando o próprio circuito de violência que se busca conter.
Há ainda o risco de que a desarticulação de territórios de "refúgio" - locais onde faccionados de outros estados, como Pará e Ceará, se abrigam para articular rotas, negociar acordos e se proteger da repressão - provoque efeitos imprevistos, com a reorganização desses refúgios em novas áreas do Rio de Janeiro ou em outros estados.
Paralelamente, a "guerra aérea", com drones de vigilância e lançamento de artefatos, inaugura uma nova frente urbana de confrontos tecnológicos, aumentando o custo humano, a complexidade das operações e consolidando uma lógica em que Estado e facções espelham um ao outro na militarização do conflito.
Essas práticas transformam favelas e periferias em territórios de exceção, onde a lei é suspensa e a violência se torna o modo ordinário de governar. A incorporação de tecnologias de guerra reconfigura a ação policial, reforça a violência e reduz o foco em políticas comunitárias de prevenção e proteção.
Medidas duras são necessárias, mas devem ser integradas a políticas de inteligência, territorialização, descapitalização das organizações e reconstrução comunitária. Sem isso, a violência estatal se torna rotina e a população permanece refém da insegurança e da ameaça de morte.