Em 2 de outubro de 1992, a tropa de Choque de São Paulo invadiu o Carandiru, só saindo após deixar 111 corpos no chão. Às vésperas do quarto aniversário da Constituição de 1988, o massacre revelou o quanto a promessa democrática ainda nos estava distante.
Depois de décadas de autoritarismo, desprezo pelos direitos humanos e políticas hostis aos pobres, a chaga social ardia em carne viva. Consolidar a democracia exigiria inflexões profundas em nossa cultura política e jurídica. Com altos índices de reprovação ao massacre, a opinião pública parecia disposta a tais mudanças.
Contudo, as inflexões não vieram, e a segurança pública mergulhou em colapso, caracterizando um permanente "Estado de Coisas Inconstitucional", na expressão do STF (ADPF 347/2023). Desde 1992, a população carcerária cresceu 695%, a favelização se consolidou como modelo de expansão urbana e as facções criminosas se tornaram megacorporações que movimentam cerca de R$ 500 bilhões por ano - o "equivalente" a 5% do PIB regular, cifra que, na prática, anula a fronteira entre economia legal e ilegal.
A economia criminal é, paradoxalmente, valiosa. Por um lado, dinamiza o capitalismo brasileiro, reconvertendo dinheiro ilícito em capital formal. Por outro, perpetua territórios de miséria, legitimando a "guerra aos pobres", ativo político cada vez mais precioso.
É nesse cenário que a carnificina de 28 de outubro no Rio de Janeiro deve ser lida: a teatralização cruel de um combate estéril. Sem encostar em lideranças e longe de atingir o núcleo financeiro do crime, o Estado apenas empilhou os corpos dos que podem ser descartados para que o jogo, em sua essência, permaneça intocado.
Se em 1992, ao reprovar o massacre do Carandiru, a opinião pública sinalizava expectativas mais democráticas para segurança pública, a atual aprovação ao episódio carioca indica que políticas de extermínio se tornaram um importante ativo eleitoral.
Cabe, portanto, aos setores da sociedade brasileira que ainda nutrem na democracia e nos direitos humanos um horizonte de referência, impedir que populistas sanguinários ousem calcular com quantos corpos se faz um voto.