Ser mulher no sistema de Justiça significa enfrentar comportamentos que testam, cotidianamente, nossa credibilidade, como parte processual ou profissional. Ser mulher negra amplia demasiadamente esse desafio: os preconceitos e os estereótipos atravessam, de forma perversa, a sala de audiência antes mesmo de qualquer palavra ser dita. Não importa qual a profissão ou cargo. As práticas discriminatórias pautadas no gênero e na cor da pele/raça são uma desgraça que causam dor e muito sofrimento.
A maternidade é julgada com mais rigor. A forma de se vestir é sempre objeto de uma avaliação não solicitada. A fala é recebida com desconfiança. E a defesa firme dos próprios direitos muitas vezes é rotulada como agressividade. Essas distorções, nos processos judiciais de família, afetam diretamente a vida de mães, crianças e adolescentes, reforçando narrativas negativas que, injustamente, ainda moldam decisões judiciais.
É o racismo - intersubjetivo, institucional e estrutural - operando em gritante silêncio.
Desde sempre, relações entre mulheres brancas e negras foram marcadas por desigualdades nascidas do colonialismo e da escravização da população preta e parda por quase quatro séculos no Brasil. As estatísticas demonstram que a ausência de equidade de gênero nos espaços de poder e nas relações sociais são mais desiguais com mulheres negras. O feminismo contemporâneo precisa enegrecer e reconhecer essa dívida histórica. Não haverá avanço real e inclusão efetiva se os direitos e a pauta das mulheres negras continuarem sendo tratadas como temas secundários ou absorvidos por uma equidade de gênero que não inclui o feminismo negro.
Em "O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras", bell hooks nos alerta: não existe sororidade real se mulheres brancas não "abrirem mão" da supremacia que historicamente as favoreceu e sem um movimento feminista antirracista. Como mulher branca, acredito que devemos, sob o protagonismo das mulheres negras, contribuir com a transformação necessária, a qual começa em nós mesmos. Sororidade inexiste sem atitude. Escutar, acolher, dividir responsabilidades, validar dores, denunciar as discriminações, lutar por direitos e enfrentar juntas um sistema que as invisibiliza. E, também, mata.
Na quinta-feira (20/11), celebramos mais um Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, momento adequado para reafirmar que o sistema de Justiça deve eliminar os filtros do machismo e do racismo, para que as mulheres negras sejam respeitadas e tratadas com dignidade.
E o primeiro passo é a aplicação, em toda e qualquer instância, dos Protocolos para Julgamento com Perspectiva de Gênero e com Perspectiva Racial, ambos do CNJ. Quando uma mulher negra é ouvida sem descrença, todas ganhamos. O resto é ilusão de igualdade.