O Ceará consolida-se, na contemporaneidade, como um verdeiro e pioneiro território de inovação e protagonismo científico-tecnológico. O estado se posiciona como epicentro de transformação no Nordeste brasileiro, materializando aquilo que Clayton Christensen (1997) denominou "inovação disruptiva"—não meramente a melhoria incremental do existente, mas a capacidade de redesenhar mercados, processos e possibilidades. Concomitantemente, vivencia de forma concreta a "destruição criativa" de Joseph Schumpeter (1942), movimento no qual antigos modelos cedem espaço a novas formas de produzir riqueza, conhecimento e justiça social. O povo cearense, por sua história de resiliência, criatividade e persistência, constitui-se como protagonista inconteste desse processo transformativo.
É fundamental compreender, todavia, que inovação não se reduz à tecnologia. Trata-se, prioritariamente, da capacidade de adaptação responsável a novas realidades, do alinhamento entre tecnologias, processos e instituições em prol de um projeto ético de sociedade. A inovação deve estar indissoluvelmente conectada à sustentabilidade, à justiça social e ao compromisso intergeracional. Sem essa fundamentação, qualquer avanço tecnológico incorre no risco de se revelar incompleto ou, mais gravemente, de aprofundar desigualdades e criar novas assimetrias sociais. Nessa perspectiva, a inovação cearense não pode ser lida exclusivamente por indicadores econômicos ou rankings internacionais, mas sobretudo por sua capacidade de transformar vidas, reduzir desigualdades e interiorizar oportunidades para o conjunto da população.
O ecossistema de inovação do Ceará caracteriza-se por sua diversidade e distribuição territorial. Não se circunscreve à Região Metropolitana de Fortaleza, embora esta concentre importantes "nós" estratégicos da rede de conhecimento, com instituições como a Universidade Federal do Ceará (UFC), a Universidade Estadual do Ceará (UECE), o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) em Fortaleza, a Universidade de Fortaleza (Unifor) e a Universidade Federal da Integração Luso-Afro-Brasileira (UNILAB). Como assevera Manuel Castells (2003) em A Galáxia da Internet, a concentração de capital intelectual e infraestrutura tecnológica constitui pólos capazes de dialogar com redes globais de inovação. Fortaleza já se apresenta como um desses polos de reverberação internacional.
Ao mesmo tempo, o grande diferencial cearense está na interiorização desse movimento. No Cariri, no sul do estado, a Universidade Federal do Cariri (UFCA) e o IFCE em Juazeiro do Norte protagonizam um processo vigoroso de desenvolvimento tecnológico regional, em sintonia com a visão de desenvolvimento territorial sustentável de Ignacy Sachs (2004). Energias renováveis, biotecnologia e economia criativa emergem ali como eixos estruturantes, num ambiente que articula tradição cultural e ciência de ponta. No Litoral Oeste, com destaque para Sobral, a Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e o IFCE local assumem papel de agentes de transformação regional, investindo na formação de capital humano e no fortalecimento de arranjos produtivos locais.
Nos Sertões Centrais, em municípios como Quixadá e Crateús, a presença do IFCE e da UFC ilustra, na prática, o que Mariana Mazzucato (2014) descreve em “O Estado Empreendedor”, o poder público atuando como indutor corajoso da inovação, liderando processos, assumindo riscos e abrindo caminhos para o investimento privado.
Já nos Vales do Jaguaribe e Banabuiú, instituições de ensino e pesquisa desenvolvem soluções em agricultura sustentável, gestão de recursos hídricos e tecnologias adaptadas ao semiárido, demonstrando que essa região, tantas vezes associada apenas à escassez, pode se tornar um laboratório de referência em convivência inteligente com o clima e uso racional da água.
Esse mosaico de iniciativas é sustentado por um modelo de governança que evolui da tradicional “tríplice hélice”, academia, governo e empresas, consagrada por Henry Etzkowitz (2009), para uma visão de penta-hélice, incorporando de maneira mais explícita a sociedade civil organizada e o ecossistema de startups. Essa ampliação é importante porque reconhece que a inovação não é tarefa de um único setor. Ela depende de políticas públicas consistentes, de universidades atuantes, de empresas dispostas a investir em risco tecnológico, de organizações sociais que expressam demandas reais dos territórios e de empreendedores capazes de transformar ideias em soluções escaláveis. É dessa interação ampliada que surgem legitimidade, participação social e capacidade de resposta a desafios complexos.
Um marco simbólico e prático dessa construção coletiva é a obra organizada por Célio Melo et alii, “Inovação, Tecnologia, Ciência e Sustentabilidade: Transformação Digital – O Ceará Interconectado", realizada no âmbito do movimento Iracema Digital. Mais do que um livro, trata-se de um compêndio que reúne mais de 80 autores e sistematiza 120 propostas de políticas públicas em 16 diferentes áreas, todas convergindo para a agenda de inovação e sustentabilidade no Estado do Ceará .
Em linha com o que Nonaka e Takeuchi (1995) definem em “The Knowledge-Creating Company”, o trabalho exemplifica como a criação de conhecimento organizacional nasce da interação social e da conversão entre conhecimento tácito, aquele que está na experiência de pessoas, gestores e comunidades, e conhecimento explícito, vertido em diagnósticos, planos e estratégias. Ao mesmo tempo, o livro dialoga com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e com a agenda global de inovação aberta, conceito formulado por Henry Chesbrough (2003), no qual fronteiras rígidas entre organizações dão lugar a fluxos mais livres de ideias, tecnologias e colaborações. O Iracema Digital, como articulador dessa iniciativa, reforça o papel das redes colaborativas na consolidação do Ceará como um laboratório vivo de transformação digital.
A força da inovação cearense também se manifesta em projetos estruturantes que transcendem as fronteiras do estado. O Cinturão Digital do Ceará é um exemplo emblemático.
Ao expandir a rede de fibra óptica e democratizar o acesso à internet em alta velocidade, o estado materializa a visão de Nicholas Negroponte (1995) em “A Vida Digital”, para quem a conectividade é elemento central da nova era informacional. Como analisam Van Dijk (2005) e Warschauer (2006), a inclusão digital torna-se condição básica para reduzir desigualdades sociais e ampliar oportunidades educacionais, econômicas e cívicas. No Ceará, o Cinturão Digital deixa de ser apenas um projeto de infraestrutura tecnológica para se afirmar como política pública de cidadania.
Nesse cenário, o campo aeroespacial surge como nova fronteira da inovação cearense. A perspectiva de instalação, em breve, de uma sede do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no estado representa um salto qualitativo na economia do ar, com impacto direto na formação de engenheiros, na pesquisa em alta tecnologia e na atração de indústrias de base tecnológica avançada.
Ao aproximar-se de uma instituição que é referência nacional em engenharia aeronáutica e aeroespacial, o Ceará se coloca na rota de cadeias produtivas ligadas à aviação, satélites, telecomunicações e defesa, ampliando sua inserção em setores intensivos em conhecimento e inovação. Essa agenda dialoga com a visão de um estado que não apenas consome tecnologia, mas participa da sua concepção, desenvolvimento e exportação.
Em paralelo, a criação e consolidação do Campus Iracema da UFC, voltado para a “economia do mar”, reforça o protagonismo cearense na economia azul. Localizado em área estratégica de Fortaleza, em frente aos Verdes Mares, o campus se estrutura para atuar em temas como oceanografia, engenharia costeira, aquicultura, energias renováveis offshore, biotecnologia marinha e gestão integrada de zonas costeiras. Em articulação com um futuro Centro de Inovação do Pecém, conforme estudos do Banco Mundial que apontam para essa possibilidade, o Campus Iracema tende a se tornar um dos principais centros de conhecimento aplicado às atividades econômicas ligadas ao mar, conectando pesquisa básica, inovação tecnológica e demandas do setor produtivo.
Esses dois movimentos, a chegada do ITA e a consolidação do Campus Iracema, revelam uma dimensão pouco explorada, mas essencial, da estratégia cearense, a interdependência entre a economia do ar e a economia do mar. Ambas são, em última instância, expressões da mesma lógica de economias azuis, entendidas aqui como aquelas que se desenvolvem a partir de ativos ambientais, de infraestrutura estratégica e de conhecimento de alto nível, com foco na sustentabilidade e na inovação.
A economia aérea, ancorada em pesquisa aeroespacial, comunicação por satélite e logística avançada, e a economia marítima, impulsionada por portos inteligentes, energias offshore e biotecnologia marinha, funcionam como espelhos uma da outra. Suas cadeias de valor se conectam e se retroalimentam por meio de dados, logística, regulação, formação de recursos humanos e fluxos globais de comércio e informação.
Não é por acaso que o Complexo Industrial e Portuário do Pecém se alinha à noção de “vantagem competitiva das nações”, formulada por Michael Porter (1990).
O Pecém combina logística portuária de padrão internacional, integração com ferrovias, rodovias e aeroportos e um plano espacial marinho que envolve aquicultura, energia offshore e bioeconomia azul. Essa abordagem dialoga diretamente com a proposta de Gunter Pauli (2010) em “The Blue Economy”, que defende modelos de desenvolvimento capazes de gerar emprego e renda a partir da regeneração dos ecossistemas, e não de sua degradação. Ao enxergar o mar como uma fronteira de oportunidades sustentáveis, e não de esgotamento, o Ceará se posiciona na dianteira da economia azul. E, ao integrar essa agenda à economia do ar, pela formação aeroespacial, pela integração com corredores aéreos de carga e passageiros e por sistemas de monitoramento via satélite, o estado constrói uma malha de interconexões que potencializa ambas as frentes.
No campo da transição energética, o Ceará também começa a ganhar projeção
internacional com a agenda do Hidrogênio Verde (H2V). Em consonância com as análises de Jeremy Rifkin (2002) em “A Economia do Hidrogênio” e com relatórios recentes da Agência Internacional de Energia (IEA, 2021), o H2V surge como peça-chave para descarbonizar setores intensivos em energia, diversificar matrizes energéticas e fortalecer a segurança energética global. Graças à combinação de alta incidência solar, potencial eólico onshore e offshore, infraestrutura portuária consolidada no Pecém e ecossistema acadêmico em expansão, o Ceará reúne condições ímpares para se tornar um hub de produção e exportação de Hidrogênio Verde.
As oportunidades incluem desde a geração de empregos qualificados até a atração de investimentos estrangeiros, passando pelo fortalecimento de centros de pesquisa e pelo estímulo a parcerias público-privadas em tecnologia de ponta. Também aqui, a integração entre economia do mar e economia do ar se evidencia, rotas marítimas e aéreas, cadeias globais de suprimento e monitoramento climático compõem um sistema no qual ar e mar se entrelaçam em interdependência.
Por trás de cada um desses avanços, há um componente muitas vezes negligenciado no debate sobre inovação, o imaginário. Júlio Verne, em sua literatura visionária, mostrou que o futuro nasce da coragem de sonhar o aparentemente impossível. Hoje, aquilo que por muito tempo pareceu ficção científica, redes globais de dados, inteligência artificial, energias limpas, cidades inteligentes, aviões mais eficientes, exploração sustentável dos oceanos, integra o cotidiano de milhões de pessoas.
A questão central, para o Ceará e para o mundo, é que tipo de sociedade se quer construir com essas ferramentas. A resposta passa pela educação, pela ciência e pela cultura. É preciso formar cidadãos capazes de criar e usar tecnologia com senso crítico, responsabilidade e sensibilidade social. É necessário valorizar a cultura, as tradições e as artes como espaços de memória e inovação social, porque não há projeto de futuro sólido que não esteja enraizado em identidades e experiências concretas.
Os rankings nacionais, como os da Confederação Nacional da Indústria (CNI), já posicionam o Ceará em destaque na agenda de inovação. No entanto, os indicadores, por mais importantes que sejam, não podem ser um fim em si mesmos.
O verdadeiro desafio é transformar esse reconhecimento em oportunidades concretas para as juventudes das 14 macrorregiões do estado, em empregos qualificados, em novas cadeias produtivas e em fortalecimento das empresas locais como vitrines de tecnologias e modelos de negócio inovadores. Trata-se de garantir que o setor público atue como parceiro e indutor, que a academia produza pesquisa de ponta conectada às demandas reais da sociedade, que a sociedade civil tenha voz ativa na formulação de agendas e que as startups encontrem um ambiente fértil para nascer, crescer e competir em escala global.
O Ceará vive, portanto, um momento histórico. Entre a destruição criativa de Schumpeter e a inovação disruptiva de Christensen, a grande tarefa é assegurar que essa transformação não produza novas formas de exclusão, mas inaugure um ciclo de renovação mais justo, sustentável e democrático.
Ser um território de inovação, no caso cearense, significa conectar conhecimento, pessoas e regiões, articular portos, rodovias, ferrovias e aeroportos com fluxos de ciência, tecnologia e cultura, construir pontes entre a economia do mar e a economia do ar como dimensões complementares de uma mesma economia azul, interiorizar oportunidades, reconhecendo e potencializando as vocações de cada região, assumir, por fim, um compromisso continuado com ética, sustentabilidade e inclusão.
Se conseguir manter esse rumo, o Ceará tem todas as
condições de se afirmar, cada vez mais, como um polo de inovação responsável e de
prosperidade compartilhada, um território de futuro que coloca a ciência e a tecnologia a
serviço da dignidade humana e do bem viver coletivo.
Co-autoria de Samya Angelim, Presidente da Associação Cearense de Inovação (ACI)
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