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Victor Breno F. Barrozo: Uma oração em forma de música popular brasileira
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Opinião

Victor Breno F. Barrozo: Uma oração em forma de música popular brasileira

O Deus do poeta não é uma entidade metafísica distante ou uma abstração dogmática racionalizada, nem sua relação com ele sujeita a um clientelismo subserviente ou de um bem-estar terapêutico
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Victor Breno F. Barrozo. Teólogo e cientista da religião. Doutor pela Universidade Federal da Paraíba.  (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Victor Breno F. Barrozo. Teólogo e cientista da religião. Doutor pela Universidade Federal da Paraíba. 

Ao ritmo da música popular brasileira, o artista paraibano Chico César canta uma oração: "Deus me proteja de mim / e da maldade de gente boa / da bondade da pessoa ruim / Deus me governe e guarde / Ilumine e zele sempre assim".

A poética dos versos deflagra uma crítica e uma utopia: o dilema da ruindade da condição humana e a súplica de alma pelo desejo de salvaguarda e companhia divina. A música traduz não apenas uma expressão da religiosidade tupiniquim, sobretudo nordestina, mas, é igualmente um retrato sociológico da complexidade das relações humanas marcada pela ambiguidade moral dos sujeitos.

Possível é que a oração tenha surgido de uma alma perplexa, que, ao perambular pelas ruas das cidades e vielas do coração, percebe a hipocrisia, contradição e perversidade, sejam entre àqueles pervertidos deflagrados ou obtusos moralistas. O cantor pede proteção aos céus por saber de si e do outro, e sabendo, dar-se conta do mal que há - em cada um e todos nós.

Na canção, há uma espécie de salmo urbano que desvela como esse paradoxo humano se manifesta em pequenas violências do dia a dia: a postura agressiva no trânsito, a insensibilidade aos mais velhos na fila do mercado, o suborno na no ambiente de trabalho, o menosprezo com prestadores de serviço, etc. Portanto, o espírito torna-se um território de nebuloso, uma vez que o mal nem sempre está nos inimigos declarados, mas, muitas vezes, nos desejos e pulsões desordenados.

O Deus do poeta não é uma entidade metafísica distante ou uma abstração dogmática racionalizada, nem sua relação com ele sujeita a um clientelismo subserviente ou de um bem-estar terapêutico. Na teopoética chico-cesariana, o sagrado é este ser pessoal, relacional e íntimo. Essa oração disfarçada de canção do povo, não é proclamada por pregadores religiosos ou cantada pelos coros das igrejas, contudo, pelo intérprete que, entre acordes e rimas, intercede por uma outra espiritualidade.

Na mistura entre arte, fé e cultura, a música cria um espaço sagrado onde somos convidados à confissão e redenção. Chico César propõe em sua oração-canção uma espiritualidade popular brasileira: àquela que, crendo na regência divina e descrendo da bondade plena do humano, propõe um caminho de revitalização existencial e espiritual.

No final da canção, nos descobrindo cantando (ou orando) juntos com o poeta, numa petição à Deus: nos governe, nos guarde, nos ilumine e zele por nós. Na realidade desafinada da existência marcada pela crueldade e suas formas, a oração de Chico César é um protesto subversivo de que, apesar da "maldade" ou "bondade" da "gente boa" ou da "pessoa ruim", podemos nos tornar seres possíveis de, distraídos por aí, "espalhar bem querer" no mundo.

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