Mesmo após séculos de escravidão, exclusão e desigualdade, ainda há quem questione a necessidade de cotas raciais. A pergunta "Se um estudante entrou na universidade, tem as mesmas aulas e o mesmo acesso ao ensino, por que, no concurso, ele precisa de cotas?" revela uma visão limitada (e confortável) sobre o que é desigualdade no Brasil. Como se abrir a porta da universidade fosse suficiente para igualar os pontos de partida.
Mas como comparar a trajetória de um jovem negro, que enfrentou escolas precárias, racismo diário e falta de estrutura, com a de um jovem branco, que teve acesso à educação privada, apoio familiar e tempo para se dedicar exclusivamente aos estudos? Ambos estão na mesma sala de aula, mas chegaram ali, certamente, por caminhos profundamente desiguais e enfrentam desafios muito distintos depois que entram.
A resposta, porém, exige uma compreensão mais profunda da questão racial que estrutura as desigualdades sociais no Brasil. A igualdade formal de acesso às aulas, o direito de "ter chegado lá", não elimina as discrepâncias de um país que não se enxerga como racista, embora o seja.
Segundo o Censo 2022 do IBGE, o analfabetismo entre negros é de 9,7%, quase o dobro do índice entre brancos, que é de 4,4%. A evasão escolar em regiões com maior presença quilombola varia entre 15% e 20%, enquanto a média nacional é 10%. A escolarização de jovens negros de 15 a 17 anos é aproximadamente 8 pontos percentuais inferior à de jovens brancos.
Essas estatísticas revelam uma história de vulnerabilidades acumuladas ao longo de gerações. Ou seja, entrar na universidade já é uma vitória que precisa ser celebrada, mas também é um ponto de partida, e não de chegada.
A taxa de desemprego entre negros é de 13%, enquanto entre brancos é 11%. Segundo o Observatório de Pessoal, a proporção de negros no Poder Executivo permanece constante, em aproximadamente 40%, desde 1999 até 2023. Isso indica uma sub-representação, refletindo o desequilíbrio na composição racial do serviço público federal.
As cotas raciais não são uma concessão injusta. São uma estratégia de reparação diante das desigualdades históricas provocadas pelo racismo, que impedem a igualdade de condições. O objetivo é uma transformação que vá além do mérito individual. A universidade e o concurso público são conquistas, sim, mas não corrigem sozinhas os efeitos acumulados de séculos de exclusão.
Igualdade de oportunidade real exige reconhecer essas distâncias e enfrentá-las com políticas públicas. Afinal, não somos iguais na largada e fingir que somos é perpetuar a desigualdade. As cotas não distorcem o mérito; elas corrigem a distorção histórica que impediu tantos de sequer disputar.