Existem duas leituras indesejadas de mundo: a ingênua e a desonesta. A primeira toma por verdadeiro o que lhe é mostrado, passiva e deslumbrada, sem indagar por que e como certas narrativas são construídas. Em um país ainda marcado pelo analfabetismo funcional, o pensamento crítico vira artigo de luxo. A leitura desonesta, por sua vez, enxerga as motivações reais, delas se aproveita e as oculta, trocando-as por versões simplificadas para explorar a boa-fé alheia.
Tome-se o Nobel da Paz deste ano, com cerimônia em 10/12, concedido à venezuelana María Corina Machado. Para compreendê-lo, vale o slogan da campanha de Bill Clinton (1992): “É a economia, estúpido”.
Falar da Venezuela sem mencionar que possui as maiores reservas de petróleo do mundo é mutilar o contexto. É membro fundador da Opep, criada em Bagdá, no país cujo líder, posteriormente, seria derrubado pelos EUA, não sem antes flertar com a substituição do dólar pelo euro nas transações do petróleo iraquiano.
A manobra lembra o xadrez: um garfo com peão envenenado. Donald Trump desejava o Nobel da Paz em 2025; não venceu. Porém a laureada teria sido co-indicada por seu, hoje, Secretário, Marco Rubio, e essa vitória, lida cinicamente, dá verniz de legitimidade a uma política externa norte-americana mais assertiva na Venezuela.
Some-se a isso notícias recentes, sob o pretexto de combate ao narcotráfico, de autorizações para operações de inteligência e militares encobertas no país. Não é novidade: a história latino-americana registra reiteradas intervenções estadunidenses, e a antiga Escola das Américas formou quadros que protagonizaram golpes, como Pinochet no Chile.
Textos que limitem à “defesa da democracia” como fundamento do Nobel e ao “combate ao narcotráfico” como motivo para interferência externa na Venezuela, ignorando a maior reserva de petróleo do planeta, incorrem, no mínimo, em ingenuidade; no máximo, em desonestidade.
Soa tão crível quanto foi, em 2003, atribuir preponderantemente a “armas de destruição em massa”, jamais encontradas, a derrubada de Saddam Hussein. Nem ingênua, nem desonesta: escolha a leitura crítica.