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"Estamos num momento de risco extremo"
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"Estamos num momento de risco extremo"

Marcos Nobre
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Rio de Janeiro 06/07/2013. Retrato do cientista político Marcos Nobre durante a Mesa
Foto: FELIPE RAU/AE Rio de Janeiro 06/07/2013. Retrato do cientista político Marcos Nobre durante a Mesa "O Povo e poder no Brasil" na 11° edição da Festa Literária Internacional de Paraty, em Parati, no Sul do Estado do Rio de Janeiro. (FOTO: FELIPE RAU/AE)

O filósofo e analista político Marcos Nobre é um leitor atento (e preocupado) dos movimentos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em série de artigos, o pesquisador adverte para o que considera uma escalada de autoritarismo que vem degenerando rapidamente em golpismo. Publicado há uma semana pela editora Todavia, o ensaio "Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia" é mais um sinal desse alerta ao país, assegura Nobre, para quem o momento é de gravidade e "risco extremo". Por videoconferência, o pensador aponta as razões pelas quais o presidente montou um "governo de guerra" para resistir ao desgaste provocado pelas crises política e de saúde e ao encolhimento de sua base eleitoral. Também avaliou como positivo movimento de unidade no Brasil e disse esperar que essa mobilização reúna força suficiente "que não seja mais possível a Ciro Gomes ou a Lula dizerem que não se sentarão à mesma mesa para conversar.

O POVO - O senhor já analisou momentos de crise aguda em 2013, 2016 e agora em 2020. Vê algum tipo de conexão entre esses episódios da história recente do País?

Marcos Nobre - Sim, estão todos conectados. Desde 2013 que estamos em crise. O ano de 2013 foi a eclosão de uma insatisfação, que era uma insatisfação generalizada com a maneira de funcionar do sistema político, e isso levou a uma crise prolongada. Esse sistema não compreendeu junho de 2013 como um desejo das pessoas de que se abrisse para a sociedade, que abrisse canais de participação e novas maneiras de os partidos funcionarem, que levasse em conta a sociabilidade digital e os instrumentos digitais. Essa crise aberta em 2013, que não foi resolvida porque o sistema político resolveu se blindar contra a sociedade em vez de se abrir para ela, foi agravada pela crise econômica. Então a gente tem uma crise institucional, ou seja, as instituições já não estavam mais funcionando de uma maneira adequada, e a isso se soma uma crise econômica agudíssima e a uma recessão muito dura. Nesse momento, quando se juntam as duas coisas, uma energia que estava solta na sociedade não encontra canalização. Um ou outro partido começou a se abrir para que candidaturas novas surgissem, mas essas iniciativas foram minoritárias. Do outro lado, quando a gente vai pensar na crise política que se seguiu, ela está muito ligada ao fato de que um desses polos aglutinadores dessa energia social foi a Operação Lava Jato. É como se uma parte do Judiciário, principalmente das instâncias inferiores, dissesse "olha, vamos utilizar essa energia que está solta na sociedade e vamos organizar isso dando um foco para ela". A Lava Jato prometeu para a sociedade que iria fazer a reforma do sistema político que o próprio sistema não fez. É uma promessa ilusória, porque o Judiciário não faz reforma política, muito menos a segunda instância do Judiciário. Mas isso aglutinou as pessoas ou uma parte delas. Para mim, o lavajatismo é um exemplo de como, na ausência de canais institucionais, a energia social vai para outro lugar. Quando a Lava Jato ganha a força que ganhou, isso tem um efeito mais forte do sistema político de se fechar para a sociedade. Porque o sistema falou: "Bom, agora estão à nossa caça, e nós temos que nos defender".

OP - Quais foram as consequências disso?

Nobre - Quando há esse tipo de movimento de autodefesa do sistema político, ali em 2015, quando Eduardo Cunha vira presidente da Câmara dos Deputados, isso tem o efeito de aprofundar o colapso institucional em que a gente já estava. Porque o sistema começa a usar as instituições para autodefesa e a fazer negociações, entregando uma parte do sistema para os leões da Lava Jato. Assim o resto passaria sem ser preso, que foi a "parlamentada" contra a presidente Dilma Rousseff. Veja que uma coisa vai agravando a outra. E, no meio disso, temos ainda por cima desastres ambientais de uma magnitude que até hoje não se tinha visto no país. E passam desapercebidos. Nós conseguimos ter um colapso institucional, uma crise econômica, uma crise de representação generalizada e, agora, uma crise pandêmica. Realmente parecem as sete pragas o Egito. Agora, não são as pragas porque nós mesmos estamos nos infligindo um sofrimento desnecessário. Claro, a pandemia não foi causada por nós, mas, enquanto país, não estamos respondendo à altura. Nós poderíamos ter evitado muitas desses milhares de mortes se tivéssemos tomado medidas efetivas, mas não é possível porque temos um presidente antissistema e não quer dirigir o sistema.

OP - O senhor falou que o presidente não quer governar o sistema. Outros gestores no mundo todo aproveitaram o momento para capitalizar politicamente a pandemia. Por que Bolsonaro não fez o mesmo no Brasil?

Nobre - Essa é a pergunta que eu tento responder no meu livro ("Ponto final", editora Todavia). Porque é isso que revela o que Bolsonaro é. Eu tento dizer por que Bolsonaro não fez o que outros líderes fizeram, mesmo aqueles que inicialmente negaram a pandemia, depois voltaram atrás e disseram que era sério, que era preciso reorganizar o país para combater a doença. Por que ele não fez isso? A resposta curta é porque nós temos um presidente convictamente autoritário. A resposta longa é a que dou no livro, que é a seguinte: todo líder populista é antissistema. Ele é contra tudo que está aí. Quando você é contra o sistema e vira presidente, ou primeiro-ministro ou líder de um país, por exemplo, você está numa situação difícil. Porque você é antissistema, mas tem que dirigir o sistema. Como fazer isso? Qual é a solução que os populistas encontram? Deixam o sistema funcionar, ou seja, a merenda continua chegando na escola, tem atendimento de saúde, mas atacam o sistema permanentemente. Agem como se não fossem os líderes e estivessem ali continuando a mesma luta que tiveram durante a campanha. Por isso que nunca governam, passam o tempo inteiro fazendo campanha. Em geral, é uma característica dos populistas dos últimos dez anos. Mas o Bolsonaro tem uma característica específica. Não é apenas líder populista, mas populista e autoritário. Essa retórica antissistema dele, que não é só retórica, é uma tática e estratégia política, tem por objetivo destruir a democracia. Esse é o objetivo do Bolsonaro. Muitas pessoas ouvem a palavra sistema e dizem "eu concordo com Bolsonaro". Afinal de contas, o jeito como o sistema político funciona realmente não é bom, mas são pessoas que são democratas. Acontece que, para Bolsonaro, o sistema é a democracia, e a democracia é de esquerda. Temos que pensar numa coisa mais ou menos assim: quando democratas contam a história do Brasil, eles dizem que, a partir de 1945, o país teve uma democracia. Aí houve uma ruptura autoritária, e depois nós retomamos a democracia em 1985, com a redemocratização. Bolsonaro conta da seguinte maneira: nós tivemos um grande momento na história do Brasil, que foi a ditadura militar, que tinha o melhor modelo possível de funcionamento do país, e então tivemos uma ruptura, que foi a redemocratização. O inimigo dele é tudo que foi feito depois de 1985. É a Constituição Federal, é toda a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), todas as instituições que foram criadas. A estratégia, neste momento do primeiro mandato, era destruir as instituições por dentro. Coloca um sujeito para dirigir a Fundação Palmares, criada para combater o racismo, que diz que não tem racismo, que xinga o movimento negro. Põe um sujeito no Meio Ambiente que destrói o meio ambiente. Vai corroendo as instituições. Esse era o momento em que estava o projeto autoritário do Bolsonaro, que era um projeto de anos, não era para um mandato só. Primeiro, destruir as instituições e consumar o colapso institucional. E, num segundo momento, instaurar em definitivo o autoritarismo no Brasil, num modelo como o da Hungria de Viktor Orbán. Destrói a democracia pela via eleitoral. Continua disputando eleições e continua ganhando, mas vai destruindo as instituições e reduzindo a democracia à eleição, que é justamente o que não pode acontecer.

OP - O senhor diz no seu livro que Bolsonaro montou um governo de guerra. A finalidade desse governo é essa, desmontar a Nova República?

Nobre - Quando falo do "governo de guerra", estou falando de uma estratégia defensiva do Bolsonaro. Porque o projeto dele estava ainda na primeira fase. Estava acumulando forças para instaurar o autoritarismo num segundo mandato. O projeto dele era esse. Estava enfraquecendo as instituições, mas a pandemia pegou o projeto de Bolsonaro no contrapé. Veja o Orbán: usa todo o primeiro mandato para preparar o autoritarismo que vai consolidar. E a pandemia veio com 14 meses de governo. Está num momento em que não tem força suficiente para implantar o autoritarismo que ele quer, mas, ao mesmo tempo, precisa se defender. O Bolsonaro não podia fazer da pandemia um momento para se projetar. Se fizesse isso, teria de se render ao sistema e se tornar um presidente normal e democrata, coisa que ele não é. Por isso tem de se refugiar na base mais fanática de apoio que tem, que é uma base de fato autoritária e militarista, no sentido de que admira as armas. E o governo de guerra é porque ele sabe que será atingido por essa pandemia. Se o Bolsonaro se tornasse um líder que faz o que a ciência política chama de reunião em torno da bandeira, ou seja, de união nacional para combater uma ameaça ao país e à vida das pessoas, ele passaria a dirigir o sistema. Passaria não apenas a dirigir o sistema que já existe, mas a reorganizar o sistema de uma maneira gigantesca, porque tem de colocar indústria, comércio e todos os ministérios para se reorientarem em função do enfrentamento ao coronavírus. Se fizesse isso, significaria que se renderia à democracia. Não fez isso por fidelidade às suas convicções autoritárias. Por isso digo que Bolsonaro tem que ser considerado como político. Xingar de burro, louco ou psicopata tira dele a sua essência, que é ser alguém autoritário. Nós precisamos levar a sério isso. Bolsonaro é um político, e é um político autoritário. Ele não quis abrir mão desse projeto e por isso se refugiou nessa base mais fanática. Ao mesmo tempo, ele aprofundou a aliança dele com setores das Forças Armadas que aceitaram ir para o Governo e que desempenham hoje o papel de coordenação e de organização entre os ministérios, para dar uma certa homogeneidade ao Governo. Simultaneamente, começou a negociar com o centrão da Câmara. Temos aí um tripé muito claro: uma certa base de apoio, que não é tão grande como a que teve antes. Não tem mais uma organização do ministério dele por feudos. Não tem mais o feudo do Moro, o feudo do Guedes e o da Tereza Cristina, e passa a ter uma coisa mais organizada pelos militares. E, ao mesmo tempo, negocia com o centrão um seguro anti-impeachment, porque sabe que estará nos próximos meses sujeito ao impeachment. Bolsonaro sempre pediu que entrassem com impeachment porque sabia que iria sair mais forte. Agora, ele sabe que não sairá mais forte e a possibilidade de que seja afastado é alta.

OP - Por que a aproximação de Bolsonaro com o centrão não gerou um curto-circuito nessa base mais ideologizada do presidente?

Nobre - Porque justamente é a base que tem a maior disposição para aceitar qualquer coisa que venha do presidente e tem uma obediência quase cega ao líder, é uma lógica da liderança e do carisma do líder. Por isso foi se refugiar nessa base. Porque pode dizer: o nosso projeto autoritário, infelizmente, nós temos que adiar. Não vai ser como tinha sido planejado antes, e eu preciso sobreviver. Bolsonaro vai dizer para essa base: vocês me desculpem, mas eu vou fazer acordo com o sistema porque preciso sobreviver para lutar outro dia. A lógica é militarista. O desprezo de Bolsonaro pela vida é o desprezo de um militar no campo de batalha dizendo "guerra é guerra, e gente vai morrer". Agora, no caso dele, a guerra não é contra o vírus, ou seja, não é uma guerra para salvar vidas, é uma guerra para mantê-lo no poder e manter vivo o seu projeto autoritário. É uma guerra que não só nos custa vidas, mas que nos leva à destruição. É muito grave esse governo de guerra no qual ninguém pode ser maior do que ele. Como a estatura dele é minúscula, a estatura do governo também será minúscula. Por isso ele tem que jogar fora do balão quem tiver mais peso do que ele. Foi assim com Mandetta, foi assim com Moro. No caso do Moro, tem mais um elemento ainda, que é: Bolsonaro precisa, neste momento, ter um controle quase absoluto da Polícia Federal, tanto para ele mesmo quanto para o centrão, com quem ele está negociando. Ele precisa garantir ao centrão que não vai voltar aquela história de sair prendendo gente, condução coercitiva, esse tipo de coisa. Precisa dar uma garantia ao sistema.

OP - Como o senhor avalia aquela reunião de 22 de abril, no Palácio do Planalto? É um retrato do governo Jair Bolsonaro?

Nobre - Aquela reunião é a imagem perfeita do novo governo Bolsonaro, do governo de guerra que ele montou. Ali, o que ele estava dizendo era o seguinte: nós estamos em guerra, e a guerra é pela manutenção do meu próprio mandato e do meu projeto autoritário, para que eu consiga viver outro dia e lutar outra batalha. E, num momento de guerra e num governo de guerra, não pode haver dissensão. Se alguém falar alguma coisa aqui que vagamente pareça que está me contradizendo, está fora. Defendeu o isolamento? Está fora. Falou mal da cloroquina? Está fora. Soltou a PF em cima de deputado bolsonarista? Está fora. Era realmente uma ordem unida. Era um sujeito que está dirigindo um exército numa batalha e está dizendo quem faz o quê, e não pode haver divergência. Esse é um lado. O outro lado são todos aqueles ministros servindo de capachos para essa atitude de Bolsonaro, ou seja, não apenas concordando com tudo, mas ainda por cima lambendo a bota do chefe, que é a parte mais deprimente. Tem outro elemento ainda, que são as dissensões internas do governo. Há claramente ali a briga do Weintraub dizendo que a aliança com o centrão vai me queimar porque vou ter que entregar um cargo bilionário e isso vai pegar mal na minha base, que é a sua também, presidente. Tem a fala do Guedes dizendo: militares, vocês estão querendo tomar meu ministério e se tomarem, vai dar confusão. Tem o presidente da Caixa Econômica não só falando as barbaridades que ele falou, mas que é candidato a substituir o Guedes. Ele estava ali não apenas fazendo o rapapé ao chefe, mas dizendo aos militares que está disposto a substituir o ministro nos termos que vocês acharem que é necessário. Por que é importante olhar isso dentro do Governo? Porque um movimento de regeneração da democracia, e que deve ter como horizonte o afastamento do Bolsonaro, precisa olhar para as dissensões internas do Governo e onde tem as fraturas. Precisa bater nessas fraturas. Claro, as fraturas e as dissensões vão ser cada vez menores porque, no governo de guerra, quem diverge vai ser afastado. Por exemplo: tem uma dissensão interna na base bolsonarista a respeito da aliança com o centrão? É exatamente isso que nós temos de dizer. E não é qualquer centrão, vamos deixar claro. Porque o centrão também são muitos. É um centrão de raciocínio de curtíssimo prazo. É o centrão carcará: pega, mata e come. É o centrão que está disposto a ir para o governo mesmo que esse governo esteja caminhando para a inviabilização.

OP - Há movimentos pró-democracia que a gente tem visto se intensificarem. Manifestos que têm circulado de vários tipos. Quais as dificuldades que o senhor vê para esses movimentos? Acha que eles vão correr ao largo dos partidos? Ou uma negativa de grandes partidos pode inviabilizar uma articulação anti-Bolsonaro?

Nobre - Vamos pensar num momento mais ou menos parecido com o que estamos vivendo, que foi 1984. Por que é parecido? O que junho de 2013 nos revelou é que a democracia brasileira tem que ser repactuada, e tem que ser repactuada com todo mundo, não pode deixar gente de fora. Só deixa de fora autoritário, quem for contra a democracia está fora. Nós precisamos chegar a este fundo de poço para fazer algo que, desde junho de 2013, está na mesa. É evidente que existe uma repactuação que não é eleitoral e existem cálculos eleitorais. Partidos fazem cálculos eleitorais. Mas vamos pensar lá na redemocratização e em 1984. Quem é que empurrou os partidos para formarem essa frente ampla em torno da emenda das Diretas Já? Foi a sociedade. Muitas vezes, a sociedade fica aturdida com o tanto de desgraça que nós tivemos e fica esperando que os partidos façam alguma coisa. Mas os partidos só se mexem depois que a sociedade se mexe, e a sociedade está se mexendo em que direção? Se a gente for olhar pesquisa, a rejeição está aumentando e o apoio ao impeachment está aumentando. Num momento em que chegar a uma coisa tão acachapante, como dois terços de apoio pelo afastamento do presidente, os partidos têm que sentar e se entender. E têm que se entender não eleitoralmente, não é procurar uma candidatura para um nome, porque não há acordo eleitoral. Mas têm que se entender sobre que tipo de instituições nós vamos criar para o futuro. Tem que ter acordo sobre regras de convivência política, que foram totalmente desrespeitadas nos últimos anos, regras de convivência básica entre as forças. Regras de competição eleitoral que tenham o mínimo de equidade e elementos substantivos também. Por exemplo, desde a eleição de Bolsonaro que a gente não ouve mais falar em desigualdade como política de governo. Não é possível isso. E a repactuação da democracia brasileira tem que ser em cima da desigualdade. A direita democrática tem uma resposta para a desigualdade, a esquerda tem uma resposta para a desigualdade. São respostas diferentes, mas não vamos dizer que a direita também não acha que a desigualdade é um problema no Brasil, porque acha. Tem como fazer acordos que são mais substantivos também, não são só de procedimentos, de como faz eleição e compete. São acordos mais amplos, e as forças políticas e os partidos vão ser empurrados para isso pela sociedade. O ex-ministro Ciro Gomes e o ex-presidente Lula, quando estão dizendo "eu não sento com", "eu não negocio com", o que estão fazendo é dizer que querem aumentar o cacife nessa negociação. Todo mundo quer sentar na janelinha. É bom fazerem isso? Não. Porque estamos num momento de risco extremo, não pode brincar com isso. A possibilidade de a violência eclodir é muito alta. Violência é a favor do Bolsonaro, não é a favor da democracia. Não é bom. Não é bom fazerem isso. O que espero é que esse movimento de unidade da sociedade em torno da democracia seja tão acachapante que não seja mais possível a Ciro Gomes ou a Lula dizerem esse tipo de coisa. Dizerem que vão sentar e conversar, sim, porque tem uma coisa muito maior que está em jogo.

OP - E sobre as manifestações de rua?

Nobre - Especificamente em relação às manifestações, de fato preocupa. Eu estou num estado e você numa cidade aonde o pico de transmissão (da Covid-19) ainda não chegou. É claro que, em cada pessoa verdadeiramente democrática e que fica enojada com as atitudes do presidente, a vontade é de ir para a rua já, a vontade é que ele saia já. Só que temos de olhar as condições em que estamos. Podemos aumentar o contágio se não tivermos manifestações de rua realmente organizadas, e é difícil organizar. Olha as dificuldades que a gente tem para construir esse grande acordo. Não é fácil colocar forças que deram rasteira, golpe, soco e cotoveladas umas nas outras nos últimos anos e dizer para sentar e conversar porque, senão, quem quer que ganhe as eleições em 2022, pressupondo que vai haver eleição, não vai conseguir governar se não tiver essa repactuação. O país está num momento que não é só de crise. O Brasil pode se inviabilizar realmente, é muito grave. A gente já teve crise de todos os tipos, mas inviabilização com risco de retrocesso autoritário? Isso é uma coisa nova, chegamos a um momento de crises sobrepostas que nos colocam numa situação em que temos de decidir se vamos sobreviver como país ou não.

OP - Um dos elementos ou atores dessa crise é o Judiciário. A gente tem visto o Judiciário atuar e tomar decisões desde a eleição de Bolsonaro. Como avalia as decisões recentes do Supremo como a que barrou a nomeação do superintendente da PF?

Nobre - Isso tem muito que ver com instituições que funcionam de maneira disfuncional. Esse é um colapso generalizado. No caso específico do Judiciário, isso se manifesta desde pelo menos 2015, para ser mais exato, com a prisão do ex-senador Delcídio do Amaral. Se nós estivéssemos em uma situação normal, eu olharia a decisão do ministro Alexandre de Moraes, de impedir a posse do indicado pelo presidente para a PF, como alguma coisa que não está de acordo com a convivência constitucional. Da mesma maneira, se a gente for tomar o inquérito das fake news, a gente vai dizer: isso é espúrio, do ponto de vista legal. Não pode um Poder decidir investigar uma coisa que atinge os seus membros e ainda por cima julgar isso. Instaura o inquérito, investiga e julga. Não pode. Numa situação normal, isso seria inaceitável. Acontece que nós estamos em risco de perder a democracia, de perder tudo. O nosso colapso institucional vale para os dois lados. Do mesmo jeito que Bolsonaro quer se apossar da PF e das instituições para uso pessoal e do seu projeto, o campo que defende a democracia tem que usar todos os instrumentos à sua disposição para barrar esse processo, inclusive as atitudes tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes. As duas atitudes não devem ser examinadas "in abstracto", como se vivêssemos em uma situação normal. Nós vivemos uma situação de guerra contra a democracia. Nessa situação, o ministro tomou duas decisões importantíssimas, principalmente quando a sociedade fica clamando que as instituições façam alguma coisa que não seja só nota de repúdio. Pois bem, o ministro Alexandre fez. Ele atacou um pilar fundamental do projeto do Bolsonaro, que é a central de desinformação que o sustenta. Veja a atitude dos "Sleeping Giants" no Brasil ou a do próprio ministro. São coisas que estão tendo efeito sobre o financiamento desse tipo de disparo de fake news. Isso é muito importante. Mas há outro pilar. Ele acertou também a PF. Disse ao presidente: a PF não é sua. Disse isso em dois sentidos: primeiro, impedindo a posse do Ramagem. E o segundo, determinando à PF que fizesse busca e apreensão na casa e nos escritórios dos bolsonaristas, atacando a base dessas centrais de desinformação. Acertou cirurgicamente os dois pontos de grande fraqueza de Bolsonaro. O terceiro ponto é a gente saber identificar exatamente quais são as posições dentro das Forças Armadas, tanto de militares que estão no Governo quanto que estão na ativa, e fazer aliança as Forças Armadas democráticas. Isso é muito importante nessa transição para anular o risco autoritário.

OP - Queria que o senhor avaliasse a proeminência que os governadores assumiram desde o ano passado, com papéis que extrapolam o seu âmbito, normalmente muito mais limitado à gestão dos seus territórios.

Nobre - Essa é uma novidade importante dessa crise. O Brasil, em princípio, é uma federação igual aos Estados Unidos, mas a gente sabe que a autonomia efetiva dos estados é muito menor. Porque o Governo Federal centraliza as ações. No momento em que o governo Bolsonaro se retirou do combate à pandemia, de uma maneira criminosa, ele obrigou os governadores a agirem, mesmo não tendo os mesmos recursos e a mesma capacidade de coordenação que teria o Governo. Ao invés de o Governo reunir todo mundo e fazer algo que fosse organizado em termos de testagem e de distribuição de respiradores, de reorganização da indústria para produzir esses elementos fundamentais, Bolsonaro se demitiu da tarefa e os governadores tiveram que assumir. É uma coisa que é ruim no sentido de que é descoordenado, os estados passam a lutar entre eles por equipamentos e insumos. Ao mesmo tempo, os governadores são os únicos que estão nos defendendo. O que acho que é uma diferença muito grande em tudo isso que está acontecendo: é o Consórcio do Nordeste. Isso mostra que os governadores, mesmo tendo de responder ao eleitorado e estarem em luta, conseguem fazer uma coordenação entre eles. Se a gente conseguisse ter uma coordenação de todos os governadores como temos no Consórcio Nordeste, seria um avanço muito grande. Eu sei que é difícil que aconteça porque o Governo Federal entra para atrapalhar, não entra para ajudar.

 

Impeachment

Segundo Nobre, o risco de um processo de impeachment sem formação de frente contra Bolsonaro corre o risco de fortalecer o presidente. Para ele, as forças democráticas têm de deixar discussão sobre 2022 de lado

 

Análise

No ensaio "Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia" (Todavia), Marcos Nobre analisa as razões pelas quais o presidente montou um novo governo, agora preparado para a guerra pela sobrevivência política

 

Pandemia

Para o autor, que já havia escrito série de artigos para a revista "piauí" sobre o presidente, Bolsonaro foi apanhado no contrapé pela pandemia do novo coronavírus. E agora tem de reorganizar suas bases para evitar o avanço do processo de impeachment ou uma cassação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

 

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