Primeiro reverter a depressão para depois avaliar a política fiscal. O parecer é do economista e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), José Roberto Afonso, considerado "pai" da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um marco na contabilidade pública brasileira. A lei completa 20 anos neste ano. Em entrevista ao O POVO, ele faz uma análise dos impactos da pandemia na economia e diz que o Brasil se tornou parâmetro mundial do que não se fazer neste cenário. Para ele, a conta virá cara: em vidas e em recursos.
"A ciência das finanças foi abandonada e no seu lugar medidas estão sendo adotadas sem o menor rigor técnico. O socorro virou uma grande transferência voluntária em que o Governo Federal transfere para quem quer e não para quem realmente precisa".
E alerta que, o Ceará, reconhecido por prezar o rigor fiscal, pode ser o estado mais prejudicado. "Nenhum estado, por mais bem gerido que seja, consegue superar uma depressão sem ajuda do Governo Federal, porque só esse pode se endividar fortemente neste momento. O maior risco para o Ceará é que o rigor técnico de sua gestão pode não ser reconhecido pelo critério político e discricionário que o Governo Federal adotou na distribuição do socorro sem se ater as efetivas perdas de receita".
José Roberto Afonso - A LRF já prevê suspensão de algumas regras, como limite de despesa de pessoal e de dívida, enquanto durar uma calamidade e enquanto a economia crescer abaixo de 1% (não há o que se falar em controle).
José Roberto Afonso - O mais grave é que o denominador não para de cair e, por si só, isso já levaria a aumentar a razão dívida/PIB, mesmo que gasto ou dívida não crescessem. Enquanto não revertemos a depressão nem há o que avaliar na política fiscal. Seria o mesmo que discutir quando o paciente sairá do hospital, se ele sequer conseguiu sair da UTI para voltar para um quarto.
José Roberto Afonso - Cortes de gastos podem e devem ser feitos independentes da LRF. Esta lei dita apenas os casos em que cortes se tornam obrigatórios, quando a dívida extrapolou o teto, quando a economia não está em recessão. Na depressão, como vivemos, por maior que seja a desconfiança do governo ela é muito menor do que a nutrida pelo resto do setor privado. Tanto que a dívida pública já cresceu muito mais que o gasto público. Melhor caminho para reativar a economia será transformar o aumento de dívida pública em privada.
José Roberto Afonso - Nunca. É uma guerra realmente mundial. Na economia, se afetou tanto demanda, quanto oferta, caíram fluxos como subiram estoques. E, controlada a pandemia, certamente estaremos em um novo normal.
José Roberto Afonso - Os impostos tenderão a ser cobrados mais sobre negócios digitais do que presenciais. A gestão pública deverá ser o mais informatizada possível para se fazer mais com menos recursos.
José Roberto Afonso - Importante mostrar que, no longo prazo, se terá uma dívida pública inferior à atual e que se traçará uma trajetória a ser perseguida, depois de superada calamidade e depressão. A imensa maioria controla dívida e não o gasto, ou, quando age sobre este, está vinculado àquele. Fora isso, há isonomia federativa. Governo Federal nunca se submeteu a um limite de dívida e muito menos aos rigores que ele cobra dos governos estaduais e municipais.
José Roberto Afonso - Acredito que todas as regras fiscais serão repensadas. Se caminhamos para um novo normal para economia e para sociedade, não há porque se ater a normas construídas para um passado que não se repete.
José Roberto Afonso - A começar, novas regras de saúde precisarão ser adotadas, obviamente para evitar novas pandemias. A educação será cada vez mais a distância e menos presencial. A segurança pública exigirá muito mais inteligência do que apenas ação policial na rua.
José Roberto Afonso - Gestão profissional e equilibrada. A Secretaria do Tesouro Nacional é das corporações mais qualificadas do governo.
José Roberto Afonso - Nenhum estado, por mais bem gerido que seja, consegue superar uma depressão sem ajuda do Governo Federal, porque só esse pode se endividar fortemente neste momento. O maior risco para o Ceará é que o rigor técnico de sua gestão pode não ser reconhecido pelo critério político e discricionário que o Governo Federal adotou na distribuição do socorro sem se ater a efetivas perdas de receita. A maioria dos estados não foram compensadas por suas perdas e, de longe, o Ceará foi o mais prejudicado, pois, segundo levantamento do jornal O Globo, é o que teve a maior proporção de sua receita de 2019 a descoberto.
José Roberto Afonso - A ciência das finanças foi abandonada e no seu lugar medidas estão sendo adotadas sem menor rigor técnico. O socorro virou uma grande transferência voluntária em que o governo federal transfere para quem quer e não para quem realmente precisa.
José Roberto Afonso - É o caso do Ceará, por exemplo, que teve boa parte da perca de arrecadação não compensada pelo socorro transferido pelo Tesouro. Em termos relativos, é o estado mais prejudicado do País. Melhor teria sido usar o sistema do seguro no qual se apura quanto efetivamente diminuiu a arrecadação e daí calcular o montante a transferir.
José Roberto Afonso - O novo regime pode ficar velho diante do novo cenário fiscal.
José Roberto Afonso - Sim, o controle também será reinventado. Cada vez mais a sociedade cobra maior participação na fiscalização. Iniciativas como as defendidas por Cialdini serão muito úteis e certamente bem aceitas pelos brasileiro.
José Roberto Afonso - Aqui se ignora tanto a ciência médica quanto a econômica. Análises consistentes e experiências internacionais revelam que não há contradição entre saúde e economia. Não há mais dúvida que um isolamento mais forte pode restabelecer confiança nos consumidores e nos empresários para que retomam suas atividades. O Brasil se tornou parâmetro mundial do que não se fazer diante da pandemia da Covid-19 e lamentavelmente pagará muito caro, em vidas e em recursos.
José Roberto Afonso - O Brasil ainda está na fase de aumentar o tamanho do túnel e da escuridão. O novo normal passará por mais digitalização da economia e nova proteção social dos trabalhadores. O mundo já estava a discutir essas questões bem complexas e desafiadoras, será ótimo que o País também se integre a esse debate.
José Roberto Afonso - Discurso não é prática, muito menos o liberalismo não deveria se confundir com inépcia. É irrelevante o tamanho do Estado, se gordo ou magro. Importa que seja forte, tenha capacidade de reduzir desigualdade.
José Roberto Afonso - Não adianta reformar o que por ora não tem forma definida. Será preciso reinventar instituições e regras. Para tanto, é preciso ter diagnóstico realista. Há século e meio atrás, o Brasil cobrava imposto sobre propriedade e comércio de escravos. A escravidão acabou e obviamente se tornou algo inaceitável na sociedade de hoje. Talvez muitos dos impostos cobrados hoje ficaram velhos diante da economia, cada vez mais se movimentando nas nuvens e não na terra. Reinventar o sistema tributário, uma instituição clássica, significará reduzir ou extinguir impostos de hoje e criar novos.
José Roberto Afonso - A Constituição de 1988 previu um financiamento múltiplo da seguridade social, que inclui a saúde, de modo a cobrar contribuições de folha salarial, faturamento e lucro. É um caminho que nunca foi bem assimilado no País. Seria interessante voltar ao espírito da Constituinte.
José Roberto Afonso - Porque insistem em usar canais e instrumentos que perderam espaço na economia brasileira, como o sistema bancário, e também porque o governo não assumiu a mesma postura proativa e de coordenação que se constata nas economias mais avançadas.
José Roberto Afonso - O melhor é o caminho normal do investimento, da produção e do trabalho, de modo que se possa reduzir e até eliminar o auxílio com caráter emergencial. Ainda não se apontou claramente esse caminho.
José Roberto Afonso - LRF melhorou muito a cultura fiscal do País e, sobretudo, seu processo de elaboração e implantação podem ajudar na inevitável reconstrução das regras para lidar com o novo normal da economia e da sociedade.
Currículo
José Roberto Afonso é doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do programa de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP; sócio de duas empresas de consultoria (Finance no Brasil e 3i em Portugal); e consultor independente, inclusive de organismos multilaterais.
Experiência
Em seu currículo, soma passagens como superintendente do Banco de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e assessor técnico especial do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte. Além de pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV).
Portugal
Atualmente, o economista está cursando pós-doutorado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), em Portugal. E é de lá que ele respondeu a entrevista do O POVO por e-mail.