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"A luta por direitos é como a piracema, vai sempre contra as ondas"
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"A luta por direitos é como a piracema, vai sempre contra as ondas"

| AGOSTO LILÁS | No dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completou 14 anos. Em todo o País, o mês passou a ser momento de conscientização contra a violência de gênero. A socióloga Helena Frota analisa aspectos que persistem na sociedade
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Helena Frota, coordenadora do Observatório da Violência contra a Mulher da Universidade Estadual do Ceará (Uece). (Foto: Aurelio Alves/ O POVO). (Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO Helena Frota, coordenadora do Observatório da Violência contra a Mulher da Universidade Estadual do Ceará (Uece). (Foto: Aurelio Alves/ O POVO).

O assunto não é novo, mas não deixa de acontecer e de alarmar. Assumindo diversas formas, as violências seguem com parte do cotidiano de muitas mulheres em todo o mundo. No Brasil, os casos podem ser contados a cada poucos minutos. Para a socióloga Helena Frota, coordenadora do Observatório da Violência contra a Mulher da Universidade Estadual do Ceará (Uece), mesmo os avanços formais estão sob ameaça de retrocesso. Em conversa com O POVO, a professora analisa aspectos que persistem na sociedade e lança perspectivas para quebrar o que chama de "onda de conservadorismo".

O POVO - A senhora tem formação em Serviço Social e em Sociologia. Em que momento e de que forma os trabalhos sobre violência de gênero e a criação do Observem surgiram?

Helena Frota - Minha dissertação do mestrado foi sobre as castanheiras no Ceará, porque na época, nos anos 1980 e 1990, existia um índice alto de mulheres com doença mental; foi até carimbado com o nome de "histeria das castanheiras". Então, fui trabalhando com a questão das mulheres, mas tudo na esfera do trabalho, tanto que fiz também meu doutorado sobre o tema. Mas em 2008 chamava a atenção o número de mulheres assassinadas, violências contra a mulher e tal, e nós começamos a buscar dados oficiais. Houve uma imensa dificuldade em conseguir essas informações. Foi aí que eu e a professora Socorro Osterne decidimos fazer um projeto que criasse esse banco de dados, porque todo mundo procurava essas informações na Secretaria de Segurança Pùblica (e Defesa Social do Estado do Ceará) e não achava. Assim surgiu o Observatório, para montar o banco de dados, fazer publicações e dar cursos. Nosso grande objetivo, que hoje é uma conquista, é servir como um instrumento para a rede de apoio às mulheres, com um caráter tanto de pesquisa como prático.

OP - Apesar de inúmeros avanços, especialmente jurídicos - como a criação da Lei Maria da Penha, que completou 14 anos neste mês -, os números da violência contra mulheres continuam alarmantes. O que pode explicar a permanência dessa realidade em que estamos em risco apenas por sermos mulheres?

Helena - Isso faz parte da cultura e da subjetividade. Estamos, no mundo, em um movimento conservador contra todas as conquistas de direitos sociais das últimas décadas e isso atravessa nossa sociedade. As falas violentas de autoridades têm um repercussão extrema nas mentalidades e isso aumenta a violência entre as mulheres. Hoje, com certeza, temos um cenário de mais violência contra os grupos socialmente mais vulneráveis. As leis, por si só, não têm poder de mudar esse processo.

OP - Além desse momento conservador, estamos passando pela pandemia de Covid-19 e suas consequências. A senhora tem pesquisado sobre os reflexos da pandemia na violência contra mulheres, certo? O que vem compreendendo sobre a situação
no Estado?

Helena - A primeira questão que chamou a atenção foi o grande número de divórcios que aconteceram na China após o início da pandemia. Algum tempo depois, a própria ONU divulgou que a pandemia aumentou o índice de violência contra a mulher em todo o mundo. E como a gente compreende isso? A casa é um ambiente de violência contra pessoas vulneráveis - crianças, idosos, pessoas com deficiência e mulheres. O isolamento social agravou uma pandemia que já existia: a de violência contra as mulheres. Não se teve tempo de o Estado pensar sobre essa violência e as mulheres voltaram a conviver durante o dia inteiro com quem as agride. Até houve campanhas de organizações e grupos, mas não uma política pública. Em Fortaleza, por exemplo, a Casa Margarida Alves, que é o abrigo municipal, foi fechada e toda a rede foi desativada de alguma forma. As delegacias e os Centros de Referência de Assistência Social (Creas) também deixaram de atender presencialmente e muitas mulheres não têm como acessar delegacia on-line ou denunciar e buscar ajuda por telefone, então o número oficial de denúncias caiu. Ainda assim, de março e abril de 2019 para o mesmo período de 2020, os feminicídios no Ceará aumentaram mais de 30%. A morte dessas mulheres é de responsabilidade pública, porque se mandou que voltassem para casa sem considerar que estariam voltando para o agressor.

OP - Há quem diga que o brasileiro é mais caloroso, emocional e propenso a ações "no calor do momento". A violência de gênero é uma particularidade da nossa cultura?

Helena - Não, as violências contra as mulheres são fenômenos mundiais, estruturais, baseadas nas ideologias dos papéis de gênero. Mas o Brasil tem sim suas características. Aqui, é no Nordeste que se mata mais mulheres. Nós somos forjados culturalmente no machismo. É salientado desde muito criança que o homem é cabra macho, não chora, tem o poder; enquanto a mulher tem que aguentar, tolerar, cuidar e resolver. Isso está na cabeça de todo mundo, vai desde o dia a dia comum até as questões de respeito às instituições democráticas. Obedecer as leis é algo raro, até os agentes de segurança olham com menos rigor para os crimes contra as mulheres. Nesse cenário, matar a mulher se torna um símbolo de conquista, uma reafirmação da masculinidade.

OP - Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de violência. No Brasil, temos a triste marca de que a cada nove minutos uma mulher sofre estupro e que a cada dia acontecem três feminicídios. Como se dá esse cotidiano de violências?

Helena - A violência que nos choca é a física, as agressões, os feminicídios. Hoje ela ainda é muito alta, mas teve uma redução depois da Lei Maria da Penha. Como se sabe que quem bater em mulher, vai preso, prevalece a violência psicológica. O agressor trata de desmoralizar e desrespeitar e, muitas vezes, a mulher que sofre essa violência nunca vai denunciar. Isso pela cultura que temos e estávamos falando. Seja pela família, pela religião, pelos papeis que internalizamos, a mulher sente como uma obrigação aceitar e tentar mudar o companheiro. Assim, muitas vivem em um ciclo de violências que precisamos quebrar.

OP - Então, quais as estratégias possíveis para combater e prevenir a violência
de gênero?

Helena - Costumo dizer que a luta por direitos é como a piracema, vai sempre contra as ondas. Mesmo nessa onda de empoderamento da opressão, nós sabemos tudo o que conquistamos e não vamos nos submeter a tudo. As mulheres redefinem seu papel e se solidarizam. Ao mesmo tempo, é preciso ter políticas públicas efetivas de proteção às mulheres, de punição aos agressores e de debates em toda a sociedade para construir novas subjetividades.

OP - O quanto a vulnerabilidade social - de raça, de classe ou de identidade de gênero - pesa como um fator para um contexto de violência contra as mulheres?

Helena - O que invariavelmente pesa em relação a todas as violências é a questão de gênero, afinal a sociedade é sim hierárquica e desigual. O homem é construído nesse lugar de macho que tem poder e precisa demonstrar e a mulher, como quem aceita e pela submissão pode mudar o comportamento do companheiro. Mesmo isso tendo mudado com as conquistas das mulheres e com as novas gerações, ainda é muito presente na nossa cultura. Concomitantemente, existem sim fatores que pesam a mais. A questão racial está junto da questão de classe. De forma geral as mulheres ganham menos que os homens e a diferença é ainda maior para mulheres negras. Como dinheiro também é poder na nossa sociedade, essa questão pesa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 60% das mulheres vítimas de feminicídio no País são negras. A identidade de gênero e a orientação sexual também são vulnerabilidades evidentes. A LGBTfobia vem dessa construção dos papeis sociais e das hierarquias também. O intolerante, o agressor querem te colocar naquele lugar que acreditam que você deve ficar e não sair. Então, se nasceu na forma tida como feminina, deve ficar ao lado de um homem. E se nasceu na forma entendida masculina, você é macho e se assumir outra identidade, te matamos. A homofobia é um medo e um autoritarismo, uma sensação de ter direito de poder sobre você e sobre o outro. Isso traz os riscos de violência para mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transgênero.

OP - Casos recentes em Fortaleza e em todo o País evidenciaram aspectos da violência que culmina em importunação sexual e estupro, especialmente contra menores de idade. Diante disso, como a senhora percebe a importância do debate de gênero e da educação sexual nas escolas?

Helena - Esse debate é extremamente importante para educar novas gerações conscientes sobre a violência contra as mulheres, porque é de criança mesmo que vamos criando nossas subjetividades. Quando o irmão é orientado a cuidar da irmã, de alguma forma, se não houver uma orientação recíproca, as crianças vão entendendo que meninos são fortes e responsáveis pela proteção, enquanto meninas são indefesas. É na escola também que devemos ensinar o respeito com o próprio corpo e o corpo do outro. O que a gente vive é uma grane politização desse tema que deveria ser de interesse e de debate e educação de todas as pessoas.

OP - Existe um perfil recorrente de agressores e de mulheres que são vítimas de violência?

Helena - A gente percebe que existem diferentes formas de a violência se expressar, os aspectos de vulnerabilidade que pesam mais as situações e diferentes maneiras de lidar com ela, especialmente de acordo com a classe social e as possibilidades de buscar ajuda que as mulheres têm. Podemos notar também que as violências físicas e sexuais tendem a começar quando a menina menstrua e durar enquanto a mulher estiver em fase reprodutiva. Fora isso, a violência não vê grau de instrução, não vê se está empregada ou não, se tem crianças envolvidas... Ela é algo estrutural. 

Disque 180

Serviço gratuito, confidencial e que funciona 24h por dia em todo o Brasil. A Central de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência recebe denúncias, monitora os serviços da rede de acolhimento e orienta sobre direitos. 

Violências de gênero

As agressões físicas e feminicídios não são as únicas violências contra as mulheres, e sim expressões mais letais de outros tipos de abuso. A Lei Maria da Penha os classifica nas seguintes categorias: violência moral, violência psicológica, violência patrimonial, violência física e violência sexual.

No Ceará

O feminicídio foi o único tipo de morte violenta que aumentou em 2019 no Estado. Ao todo, segundo o Observatório de Segurança do Ceará, 34 mulheres foram mortas devido a seu gênero, estatística 13% maior em relação a 2018, quando foram registradas 30 ocorrências.

Menos de um mês

Em 28 dias, quatro mulheres transexuais foram assassinadas em Fortaleza. Os crimes aconteceram entre 12 de julho e 10 de agosto deste ano. Conforme a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Ceará foi o segundo estado com maior número de assassinatos de mulheres trans em 2019.

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